A CAMA
Recostada, imóvel em meio aos travesseiros, a velha senhora parece uma fotografia antiga.
Não por qualquer outro motivo, apenas porque dá a impressão de estar ali desde sempre, e de que nunca mais sairá daquela posição. Como a imagem captada por um fotógrafo, entre as quatro linhas da câmara de luz, está ali presa sem se mover, em branco e preto.
Ela é branca como os travesseiros e os lençóis. Na pele, nos cabelos alvos, alisados e apanhados em coque. Dá também a impressão de ser macia como os travesseiros. E não só nas bochechas de quem come muito doce e muito pão e fica depois dormitando. Olhando bem, o corpo todo dela sobre a cama parece um travesseiro, ou um monte de pequenos travesseiros: os seios, os braços, as coxas, o ventre, metade deles difusos debaixo do lençol, metade visíveis. Excluída a brancura da cama e seus travesseiros, desdobram-se em cinza e em escuro as demais camadas do quarto. No centro a velha, ainda imóvel. Não se percebe o arfar da respiração. Os olhos estão fechados.
Como nas fotografias. Se está viva, não vive fora desse enquadramento. Deve comer ali, beber ali, evacuar ali, tudo assim mesmo ficando limpo, e alvo. Terá talvez um escravo, uma escrava, diversos escravos que a alimentam, e retiram os restos, e mantêm limpa a cama e o corpo cheios de almofadas. Mas na fotografia não se vê nem escravo nem escrava.
A não ser neste momento, em que as imagens se põem de súbito em movimento. Os olhos azuis da velha cortam como foice tudo o que há entre ela e a porta. Uma voz sai de dentro dela, uma voz também de corte afiado:
- Eugênia!
Eugênia (se essa mulher de costas curvas é a mesma que foi chamada) entra então na fotografia, parada, junto à porta do quarto. Tem o ar atento e um pouco distante de quem serve, não tanto como escrava, como empregada, ou agregada, talvez. Mais de perto, percebe-se um toque de raiva, ou ira, encravado nas rugas que circundam os olhos. Para servir e odiar ao mesmo tempo, só alguém que tenha necessidade, ou seja obrigado a isso. Eugênia é portanto uma parenta, talvez. Filha não, porque as filhas, com o tempo, transformam-se em mães da própria mãe, e Eugênia não tem o modo de quem manda na velha. Irmã também não, porque irmãs não se dobram uma diante da outra, mesmo quando grande a diferença de idade, e encaram-se, desafiadoras: Eugênia tem antes o tronco recurvo de quem há muito tempo deixou de desafiar seja quem for ou o que seja. Nem filha nem irmã, a parenta deve ser então nora. E isso explica as rugas como canaletas de ódio, porque a nora não apenas não tem a autoridade de filha, nem a impaciência de irmã, como tem sobre os ombros, além do respeito devido à sogra, o olhar policial (ou edipiano?) do marido obrigando-a a zelar, com zelo redobrado, pela velhice matriarcal.
Eugênia, a nora, aguarda encurvada junto à porta que a velha diga o que quer, embora, como parecem estar ali desde sempre nessa posição, ela talvez saiba de antemão o que vai ser pedido, mas também talvez seja o único poder que tem a nora seja esse, de ficar em silêncio, obrigando a sogra a dizer o que quer, embora as duas o saibam. E como a sogra não quer ceder nem mesmo a essa minúscula réstia de poder, prende os lábios, fuzila a nora com os olhos azuis, espera que a outra pergunte o que deseja, mamãe, para assim deixar clara também nas palavras a total submissão. É por isso que não se move um músculo no rosto da nora, seus lábios estão mais apertados que os da odiada velha mãe de seu (odiado?) marido. A velha, pois, é que vai ter de falar, ela, um pobre travesseiro entre travesseiros. Mas fala apenas a metade, ou o necessário para quebrar o silêncio estéril, a outra deverá dizer o resto:
- Tu já sabes o que eu quero.
Se fosse possível a fotografia registrar um sorriso interior, nesse momento se veria um sorriso percorrendo rente à pele, por dentro das veias, espremendo um tanto as pálpebras dos olhos de Eugênia, a nora. Ela não pergunta O que deseja, mamãe?, como deve fazer a nora respeitosa. Também não diz que já sabe o que a sogra quer. Nem mesmo o mínimo: não vai nem mesmo dizer que não, que não sabe, que faça o favor de dizer. Nada, nenhuma palavra. O silêncio obriga a velha a gastar mais palavras do que queria.
- Já são quatro horas.
A nora podia responder sim, são quatro horas, e daí? Mas quer que o seu silêncio seja uma pedra para a outra remover, que faça alguma força, ao menos, que não seja sempre e sempre uma almofada deitada em almofadas.
- É a hora do meu café.
A nora sorri com tal superioridade que se faz evidente que ela teve uma vitória. Minúscula, se for comparada com outras de maior brilho e repercussão mundial. Mas no pequeno mundo dessa fotografia, tudo faz crer que ela obteve uma grandiosa vitória. A sogra, ao menos, mostra-se tão humilhada que a única maneira de inverter a derrota é não tocar em nada, assim que chega a bandeja.