A Bela da Tarde foi mais um desses filmes dos anos 60, do século passado, que sinalizou a virada geral que estava acontecendo nos costumes e, portanto, nas convenções. Mas antes de entrar no assunto, me lembro de um detalhe. Quando o filme foi anunciado aqui em Caxias, pela rádio, o locutor de plantão caprichou na pronúncia dos nomes dos dois atores principais: “Kéthrin Diníuv e Máiquel Piccoli”, como se fossem astros americanos. Na realidade, os dois são franceses da gema, pelo menos por nascimento, e se chamam Catherine Deneuve e Michel Piccoli. Quer dizer: o filme sinalizava também, ao menos aqui em Caxias, o fim da hegemonia da língua francesa e o início da ascensão avassaladora do inglês, para meu desgosto pessoal.
O filme, além dessa dupla de atores, trazia também um diretor que foi uma espécie de guru daquela geração em briga com as convenções. Quem era? Luis Buñuel. E não é preciso dizer mais nada. A história? Séverine – notem a sutileza na escolha do nome – é uma mulher bonita, jovem, rica, casada com um sujeito de prestígio social e… insatisfeita. Até aí, uma história mais ou menos normal. O impacto está na solução que Séverine busca para abastecer de alguma emoção o seu vazio: procura um bordel e oferece seus serviços, no rigoroso horário entre as duas e as cinco da tarde, quando pode fazer um intervalo em sua vida convencional. Na época, exibido nas melhores salas, o filme deu o que falar, dos bares às rodas de chá.
Semana passada revi o filme. Claro que depois de todo esse tempo e das sucessivas quebras de convenções havidas, o filme está longe de ser chocante como foi. Mas um detalhe em especial me deixou intrigado: a performance de Catherine Deneuve no papel título nem de longe se parecia com a que me ficou na memória. Ela não apenas está fria, com a fisionomia sob aparente controle, o que já é um contraste agressivo, quase brutal, com a fogueira dos sentidos em que Séverine se arriscou. Ela dá a impressão de estar enfrentando um suplício. É isso, tem um ar sofredor, como se fazer o que estava fazendo, para sair da infelicidade, a tornasse ainda mais infeliz.
Se a Deneuve fosse má atriz, e Luis Buñuel não fosse o diretor lúcido que sabemos que foi, seria o caso de pensar que, nos anos 60, por um desses efeitos de ilusão ótica, a gente supervalorizou o filme. Mas é evidente que não é nada disso. Buñuel quis que Séverine mostrasse as suas tardes como um suplício não para enganar o marido ou quem quer que a visse por acaso. É porque ela sofria mesmo. A lição subliminar de Buñuel, vejo agora, era exatamente essa, para a geração que queria transgredir as regras: vão em frente, mas não pensem que vai ser uma festa, vocês vão sofrer muito para transgredir. Aliás, é com essa mensagem que o final do filme adquire seu maior sentido.
Para isso é bom que os filmes sejam guardados. De antes do século vinte, além da poesia e do romance, poucos indícios se tem de como as pessoas viviam sua sensibilidade. Do último século se tem tudo, ou quase, no cinema.