Todo o mundo é composto de mudança, lamentava Camões, que depois de uma certa idade, como nós, também não conseguia se acostumar com a idéia da fugacidade das coisas. O pior, dizia ele no final do soneto, é que até a mudança muda: nem ela muda mais como antigamente, nem ela é mais “como soía”. A constatação melancólica do vate presta-se a muitas considerações. Uma delas é a de que, por vermos tudo mudando ao nosso redor, às nossas costas, na nossa frente, pegamos o costume, não sei se bom ou mau, de procurar, no meio da avalanche das coisas que mudam, alguma que dure, que permaneça. Alguma coisa que sirva de tábua de salvação nesse redemoinho, para a gente ter ao menos uma idéia de onde está e quem a gente é. Por isso talvez se dê tanta importância à memória, às tradições, aos sinais de que tivemos uma história. Mas não era preciso fazer toda essa meditação grave para falar do que vou falar, um assunto quase leviano. Atribua-se isto ao outono, que nos empurra para dentro de nós e nos faz mais reflexivos. E também a Camões, de quem fui me lembrar logo agora.
A questão quase leviana era esta. Numa roda de amigos conversávamos sobre como tem mudado nossa cidade, digamos, nos últimos quarenta ou cinqüenta anos, que a tanto ia a memória de todos nós. A constatação, camoniana e óbvia, era de que tudo mudou, ou quase tudo. Mas de repente a conversa tomou o rumo inverso. Ao invés de inventariar o que mudou, saímos à cata do que não mudou. Como era também óbvio e camoniano, vimos que poucas eram as coisas que não tinham sofrido mudança. Uma delas eram alguns hábitos alimentares, alguns tipos de prato da culinária local. E aí chegamos ao fulcro da descoberta: nem os nomes de determinadas coisas de comer mudaram até hoje. Ficaram eles como um baluarte resistindo a tudo.
Um parêntese: discute-se muito em antropologia que elementos de uma cultura mais resistem ao contato com outras culturas. É a língua, são as crenças, as técnicas de trabalho? Quem já lidou com a questão sabe como é difícil chegar a constatar alguma regularidade. Então, a idéia de que os nomes de comidas peculiares têm essa força de resistência não deixa de ser uma constatação interessante. A leitora ou leitor pode fazer a sua lista, como fiz a minha, que começa pela palavra codeguin. Não há palavra em português para designar esse embutido que só tem a ver com a tradição italiana. A lista pode prosseguir com pien, um outro embutido imaginoso, feito na pele do pescoço da galinha. Ou com outros nomes (e pratos, ou quitutes) mais conhecidos: a fortaia, o anholine, o fregolá, o grôstole, e daí por diante, até ficar com água na boca. Um dia essas palavras (e outras que ainda sobrevivem no uso cotidiano da cidade) serão capazes de entrar no dicionário da língua portuguesa, sem mais discriminações. Como já foram para lá as palavras minestra e galeto. Se o mundo é todo feito de mudança, nada a estranhar que ocorra também essa.