Uma noite dessas, zapeando, peguei já na metade o poeta João Cabral de Melo Neto numa entrevista, gravada na certa há mais de 30 anos pela televisão cultural do governo (não sei que nome tinha ela na época). João Cabral estava com um desses óculos de aro grosso, que também já usei, e que dava ao rosto o ar de um intelectual francês da nouvelle vague. Ao lado dele estava Fayga Ostrower, encabuladíssima, não sei se porque estava sentada ao lado de um poeta tão importante, se porque estava assustada com as câmaras do estúdio, ou se porque ela era assim mesmo. Completava o trio o até hoje bibliófilo José Mindlin, só que com quase todos os cabelos. O entrevistador, fiel ao princípio de que o jornalista não deve aparecer mais que os fatos, era apenas uma voz vinda do espaço neutro, em preto e branco.
Parei e fiquei olhando, e ouvindo. Uma, porque nunca tivera antes a oportunidade de ver João Cabral falando. Outra, que a fama do poeta era a de ser ele um turrão, seco, de meias palavras. E me surpreendi vendo um sujeito de língua solta, quase boquirroto, falando mais que os demais entrevistados e o entrevistador juntos. Em alguns momentos, mais tenso, repetia a pergunta “compreende?”, quatro ou cinco vezes na mesma frase. Mas logo deslanchava e esquecia o cacoete.
Falou coisas interessantíssimas, contou segredos de oficina, como qualquer mortal. Contou, por exemplo, que quando fazia poesia tinha que se concentrar naquilo e não pensar em mais nada. Então, enquanto era simples funcionário de embaixada, tudo bem. Terminava o trabalho e ia para casa de cabeça fresca para a poesia. Mas quando foi nomeado chefe de missão, no Senegal, descobriu que saía do trabalho e levava os problemas da embaixada para casa, dentro da cabeça. Aí era impossível fazer poesia. Estava, no dia (ou noite) da entrevista, esperando a aposentadoria para poder se dedicar aos seus versos.
Aos versos, sim, porque – e João Cabral endureceu a voz neste ponto – a poesia se faz com versos, e não com palavras soltas como queriam os concretistas. E confessou que era um poeta visual, que suas metáforas podiam ser desenhadas, que ele de alguma forma as desenhava na mente antes de pô-las no papel. Por isso ele se socorria dos artistas, como Fayga, para ilustrarem seus poemas. Por isso ele imprimia seus próprios livros numa tipografia que encontrou na embaixada brasileira da Espanha. (Por isso, acrescento eu agora, o desespero em que ficou, nos últimos anos antes de morrer, com a cegueira de que foi atacado).
Tanto falou e tanto disse o poeta, que José Mindlin, diante das câmaras, se declarou estupefato: nunca vira João Cabral tão eloqüente. Não acho, porém, que o motivo tenha sido o de querer deixar um longo e minucioso depoimento para a posteridade, em som e em imagem. Pode ser que estivesse com alguma paixão nova, o que explica arroubos repentinos. Mas o mais provável é que ele ficou boquirroto de nervoso. Acontece nas melhores famílias.