CÉREBRO

Perdi a conta das vezes que contei aqui resumos de conversas com taxistas. Os leitores não vão se aborrecer se conto mais uma. Os motoristas de táxi, de tanto conduzirem a gente pelas ruas, se tornam uma espécie de condutores também pelos caminhos da vida. Não é difícil de explicar: a profissão deles, que os obriga a ouvir de tudo, os faz repositórios da pouca sabedoria humana que resta desde que as pessoas deixaram de ouvir os outros.

         Este de que vos falo, assim que parou na primeira sinaleira voltou-se para mim e comentou: “Interessante, o pé pisa no freio antes de a gente saber que o sinal fechou”. Apanhado de surpresa por uma conversa tão fora da rotina, dei apenas um resmungo de assentimento. Ele prosseguiu: “Não é o pé, é o cérebro, que comanda o pé; antes de a gente saber, o cérebro sabe e passa o comando”. Tive vontade de perguntar de onde ele tirou essas teorias, ou leis científicas, ou meros comentários de quem pegou um programa de variedades, mas entrei no jogo dele e disse: “Antes de dar o comando ao pé, o cérebro registra o que o olho viu: faz a conexão entre o pé e o olho”. Ele se entusiasmou: “Isso, isso mesmo, o cérebro faz a conexão, sem a gente saber”. Essa idéia de um cérebro funcionando como um motor de carro, sem a gente  ter consciência dele, me fez lembrar Paul Chauchard, o primeiro neurologista que li, ainda quando cursava filosofia, e que tentava aproximar, sempre respeitoso da fé cristã, a teoria espiritualista e a teoria biologista da alma. Em língua vulgar, se é possível violentar assim as sutilezas científicas e filosóficas de Chauchard, a alma teria que comer pela mão do cérebro. Mais ou menos como supunha meu taxista.

         Mas o sinal abriu e o taxista tomou uma rua à esquerda. Nesse ponto, o cérebro dele já andava também em outro rumo. Começou me inquirindo: “O que está achando do Lula?” Prudente, retorqui: “Fala bem, pelo menos”. O taxista riu: “Fala bem demais. É muito esperto o sujeito. É como diz o ditado: quando Deus tira o dente alarga a goela”. Não achei que o ditado viesse tão a propósito, mas ele logo esclareceu: “Quem não consegue meter os dentes, tem é que passar muita saliva, para descer pela goela”. Não era ainda muito lógico, mas passava. “É muito malandro esse Lula – continuou ele – se faz de morto pra comer o coveiro”. Era uma versão mais radical de outro provérbio que eu conhecia, e uma versão também mais macabra, principalmente depois que ele criou um diálogo fictício entre o aparente morto e o coveiro, que não reproduzo por respeito à etiqueta, digamos. E arrematou: “Um cara que diz eu tenho só nove dedos mas sei contar até dez, esse sabe agradar o povo, é que nem esses vendedores de esquina”. Fiquei na minha, como se diz. E foi bom, porque o cérebro do taxista dava já o comando para outra conversa: “E o que achou dessa lei do churrasco?” Não tive tempo de dar minha opinião. Tínhamos chegado ao meu destino. Deixei com ele o troco, merecido, pelo tanto que aprendi.

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