Quando saímos, minha mulher e eu, a comprar nosso primeiro apartamento – ninguém está livre desse tipo de sonho – encontramos este em que estamos morando até hoje, numa relação de absoluta fidelidade dele conosco e nossa com ele. Foi um desses casos raros de amor à primeira vista que continuam pelo resto da vida. Mas mesmo essa espécie de amor, que se costuma considerar mágico, tem suas razões bem objetivas. No caso do apartamento foram duas essas razões. Três, na realidade, lembro-me agora. A primeira delas era que ele ficava longe do barulho do centro da cidade. Essa razão já se esboroou, porque debaixo de minha janela passa metade do trânsito de Caxias. Mas sobraram as outras duas. E essas duas são suficientes para que o amor antigo continue perseverante, mesmo com a corrente de tráfego rugindo do lado de fora da janela. São elas a cozinha e o fogão. Duas razões cuja virtude se renova agora, quando o inverno chega de novo com sua cara cinzenta e fria. Mas virtudes que têm sua importância também pelo ano afora, mesmo no verão.
Assim que vimos o apartamento pela primeira vez, vindos de longa via-sacra de procura, sentimos o coração se alargar com o tamanho da cozinha. Uma cozinha em que era possível ter a cozinha propriamente dita, mais a mesa de comer, ou de jantar, como queiram, e de quebra um lugar para leitura e para ver televisão. Em resumo, tirando-se o espaço específico para dormir, todo o resto da vida cotidiana podia, e pode, se desenrolar nessa peça. Mais que isso. Descobrimos depois que a cozinha superava com vantagem também a sala de visitas: nada mais gostoso do que conversar com amigos ao lado do fogão, mesmo que ele não esteja aceso, ao invés de ficar rodeando um vaso de flores na sala. Sempre senti necessidade de elaborar conceitos para entender melhor as coisas da vida, mesmo as corriqueiras. E o conceito a que cheguei é de que a cozinha é o melhor espaço de convivência da casa, pela simples razão de ser esse também o lugar dos elementos básicos de sobrevivência: o calor e a comida. Daí que nesse espaço as relações parecem sempre mais íntimas e substanciais. Depois enveredei para outras análises, e concluí que esse tipo de cozinha era uma herança cultural, das antigas casas desta região, tanto da colônia como da cidade. Estou a ponto de dizer que o sinal mais claro da mudança de valores culturais na nossa região é a aceitação da quitinete, onde não cabe nada, muito menos um fogão a lenha e gente conversando ao redor. Por fim, descobri também que ter encontrado um apartamento com cozinha grande e fogão a lenha não era um acaso, embora fosse um presente do céu. O construtor do prédio decidira ser essa a última construção de sua carreira. E decidiu também que, a carreira encerrada, ia morar nele. Por isso fez a cozinha de que ele gostava e pôs chaminé para o fogão de lenha, de que ele sentia necessidade. Por isso, Deus seja louvado, peguei talvez o último exemplar de cozinha grande, com fogão a lenha, da velha cultura colonial.