Com o atual regime de chuvas, um dos prazeres de verão já está irremediavelmente perdido: o de saborear figos. As uvas também estão aguadas e não amadurecem como deve ser, mas as uvas sempre podem, com alguma ajuda do engenho e da arte, serem prolongadas nos vinhos. Os figos não. Ou são saboreados na estação certa, como a juventude, ou nunca mais. Certo, certo, é possível fazer variados doces de figo, mas nenhum deles consegue guardar, nem de longe, a carnalidade de um figo maduro, quando o verão é de sol, pois o figo tem a virtude de condensá-lo todo dentro de si. Se chove como agora, não há figos nem a sua nostalgia do paraíso.
Agora que chego a esse ponto, tenho a impressão de estar me repetindo. Pois seja. Em algum outro verão já devo ter comentado o fato de que a folha que cobriu a nudez de Adão e Eva, quando perderam a inocência, foi uma folha de figueira. Está lá na bíblia, em todas as traduções. Esse detalhe das origens do mundo, nem sempre observado com a atenção que merece, é de importância capital. Nele esta a prova incontestável de que, se havia figueira, havia figos no paraíso terrestre. O vulgo acredita que havia também maçãs, que estariam na árvore do bem e do mal, tão tentadoras que mudaram o rumo do mundo. Mas quem quiser pode ir conferir no livro do Gênese: lá não se fala nem em maçã nem em macieira. Essa fruta goza portanto de uma glória espúria e imerecida, o que não acontece com o figo. Por conseqüência não há exagero em minha frase aí em cima, que diz haver embutida nos figos a nostalgia do paraíso. O regime atual das chuvas traz, sim, outros estragos. Temporada de praia, por exemplo, só entre uma pancada de chuva e outra. Mas nada de inexorável acontece nesse caso. O guarda-sol pode funcionar como guarda-chuva, sem mudar de formato nem de lugar, até terminar a tromba d’água. Termina a chuva e seguem os ritos normais de caminhar, jogar frescobol, deitar na esteira, segundo as crenças, as convicções e os hábitos de cada um. Viagens e passeios ficam também a perigo (ou, literalmente, se transformam em perigo) com as chuvas ora repentinas ora incessantes. Mas esse é um problema também de fácil solução. Pode-se trocar a viagem por um bom livro, se não com vantagem ao menos sem perda ostensiva. Fazer rafting ou nadar nos rios é tão fora dos costumes civilizados que quem opta por esse tipo de atividade, que beira a sandice, vai nem que chova canivete. Para esses, o que pode estragar o verão não é a sobra de chuva, mas a falta de juízo. Esse não é o destino de quem passa o ano inteiro sonhando com um incansável sol de verão, capaz de fazer os figos verterem uma gota de mel pela ponta, como sinal de que a doçura não cabe em si, de tão abundante e paradisíaca. Se chover como está chovendo, foi-se o prazer do verão.
Se alguém achar que escrevi tudo isso por falta de assunto, dou-lhe metade da razão. Os assuntos também ficam aguados quando a chuva não tem controle.