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MEMÓRIAS DE SÃO CHICO

1.

Branco de neve

O mundo inteiro já sabe que nasci em São Francisco de Paula, num lugarejo chamado Santa Teresa, no então distrito de Tainhas, que era o quarto distrito do município, como aprendi na escola. Ou em casa, porque meu pai era professor e as aulas dele continuavam dentro de casa.

A primeira memória visual de que tenho registro foi a de um mundo branco de neve. Estava com meu pai olhando da janela os bonecos e a escadaria de neve no jardim da frente da casa. Meu pai era um jardineiro caprichoso: fez um jardim em plataformas, para dominar o aclive, e desenhou figuras podando com tesoura um arbusto que ele chamava de tuia. De repente, estando nós dois ainda na janela, despencou um bloco de neve do telhado de madeira, que passou raspando no meu rosto. Levei um susto. Mais tarde fiquei sabendo que essa grande nevasca tinha acontecido em 1942. Estava eu, portanto, com quatro anos de idade.

Outra lembrança marcante, dessa idade, foi um tombo que levei na estrada de terra, por onde se ia até a capela de Santa Teresa. Eu estava bem contente, com uma roupa nova de brim, casaquinho e calça curta, costurada por minha mãe. Bem contente. Mas tropecei numa pedra, ou em alguma raiz, e caí ao comprido, de bruços. Foi talvez a primeira frustração que experimentei.

Com quatro anos aprendi também a ler, na Cartilha Maternal do poeta português João de Deus. Isso não foi tarefa de meu pai. Foi minha mãe quem me pôs a cartilha na mão e me ensinou as letras. Dessa cartilha duas coisas me ficaram na memória. Uma foi o retrato de João de Deus, na página de abertura, com uma barba enorme: em toda a minha infância imaginei Deus com essa fisionomia. A outra lembrança foi o poema que encerrava a Cartilha. Decorei todo ele, porque gostei do som das palavras: 

“Andava um dia / em pequenino / nos arredores / de Nazaré / em companhia / de São José / o Deus menino / o bom Jesus. // Eis senão quando / vê num silvado / andar piando / arrepiado / e esvoaçando / um rouxinol. / que uma serpente / de olhar de fogo / e incandescente / como o do sol / tinha imantado / tinha encantado”. E assim por diante. 

Havia várias palavras esdrúxulas para mim nesse poema: rouxinol, incandescente, imantado. Mas a que mais me intrigou foi a palavra “silvado”, que associei com Silva, o sobrenome de minha mãe. Precisei crescer para descobrir que o silvado era simplesmente a “capoeira”, aquela vegetação rústica que eu conhecia nas lavouras.

Essa lembrança me daria, décadas depois, outra felicidade. Estava eu em Lisboa e passei na frente de um colégio, de onde saiam gritos de crianças brincando, com o nome de Instituto Superior de Educação João de Deus, na Avenida Álvares Cabral. Entrei porta adentro e perguntei se poderia conseguir um exemplar da Cartilha Maternal de João de Deus. A atendente abriu um amplo sorriso e me trouxe uma cópia fac-símile, que me devolveu ao começo do mundo escrito. 

Outra cena de arquivo aconteceu na escola, para onde às vezes eu ia acompanhando meu pai. Estava sentado no último banco de trás, para não atrapalhar ninguém. Nisso chegou um aluno atrasado, a cavalo, que entrou na sala com um chicote na mão. Foi sentar no último banco, onde eu estava, e enfiou o chicote  debaixo das pernas dele, no chão. Deve ter visto minha cara de menino curioso e falou, baixinho:

– Sabe o que é isso? É um rabo de tatu.

– Rabo de tatu? – perguntei, duvidando. – E o tatu já tem essa argola?

– Já – riu ele. – O tatu já tem essa argola no rabo!

Quando descobri a verdade, que rabo-de-tatu era só um apelido do chicote, fiquei meio decepcionado. A versão original era bem mais bonita. Mas descobri também que as palavras podem inventar coisas!

Um romance sobre o front da guerra

Dentre os escritores vênetos do século passado, outro nome merecedor de atenção é o de Mario Rigoni Stern, autor do romance O Sargento na Neve“que se impõe como um dos clássicos contemporâneos mais amados de nossa literatura, além de ser o núcleo de origem de todas as seguintes obras do escritor”, na avaliação de Eraldo Affinati, crítico literário e ensaísta nascido em Roma em 1956.

A trajetória biográfica de Mario Rigoni Stern esteve toda ela ligada às experiências do dia a dia da guerra no front. Ele nasceu três anos apenas depois da Primeira Grande Guerra, a 1º de novembro de 1921 em Asiago, que fica na província de Vicenza, na região do Vêneto. Depois dos estudos primários e secundários, com dezoito anos de idade, alistou-se como soldado. No ano seguinte, em 1940, a Itália de Mussolini declarou guerra contra a França, a Inglaterra e a Grécia. Rigoni Stern participou das operações de guerra contra a França e contra a Grécia, e em dezembro foi promovido a sargento.

No ano seguinte, fez treinamento para lutar no front russo, enfrentando a neve (o sargento na neve!), e em janeiro de 1942 foi enviado para a Rússia, onde assumiu o comando da trincheira italiana perto do rio Don. Com o rompimento do pacto italiano com Hitler, em 1943, teve de comandar a retirada de seu batalhão, quando perdeu seus amigos mais próximos, antes de chegar à Polônia. Ali, se declarou contra o regime de Mussolini e ficou vinte meses preso em diversos Lager (Campos de Concentração Nazistas), sendo depois transferido para trabalhar numa mina na Áustria

Com o término da guerra, em 1945, retornou da Áustria para Asiago e renunciou à carreira militar, dedicando-se totalmente à produção literária. Em 1953, saiu o seu romance O Sargento na Neve, com o subtítulo Lembranças da Retirada da Rússia, traduzido, já no ano seguinte, na França, na Inglaterra e na Alemanha.

Mario Rigoni Stern (1921 – 2008)

(Foto: Divulgação)

Como observa Eraldo Affinati, “Bastaria reportar o incipt para entrar no clima que o romance propõe: Tenho ainda no nariz o cheiro da graxa do fuzil metralhadora em brasa”.

Essa é a primeira frase. A segunda é esta: “Tenho ainda nas orelhas e até dentro do cérebro o barulho da neve que estalava debaixo das botas, os surtos de tosse das sentinelas russas e o som das ervas secas batidas pelo vento nas margens do Don”.

Ao lado desses elementos do cenário, Rigoni Stern relata detalhes do dia a dia na frente de combate, dividida em duas partes: dentro da trincheira e fora dela. Não sem um bom grau de humor, como nesta passagem:

“As únicas coisas vivas, animalmente vivas, que sobraram na vila, foram os gatos. Não havia gansos, galinhas, vacas, só gatos. Gatos gordos e rabugentos que vagavam entre as ruínas das casas caçando ratos. […]

No Natal eu queria comer um gato e fazer com a pele um gorro. Montei uma armadilha, mas eram muito espertos e não se deixavam prender. Poderia ter matado um com um golpe de mosquete, mas penso nisso só agora, e agora é tarde. Dá para ver que eu estava obcecado em só querer pegar um gato na armadilha, e assim não comi polenta e gato nem fiz gorro com o pelo”.

Eis outro livro que merece ser traduzido, pela minúcia com que constrói a experiência do estranho mundo de um front de guerra, onde não faltava nem a polenta vêneta…

Escritores vênetos da atualidade

Um recente amigo, muito prestimoso, me fez chegar às mãos algumas obras de quatro escritores vênetos. Todos eles nasceram nos anos 1920 e faleceram no início deste século, entre os oitenta e cinco e os noventa anos de idade.

São eles, pela ordem cronológica: Mario Rigoni Stern: 1921-2008; Andrea Zanzotto: 1921-2011; Luigi Meneghello: 1922-2007; Gian Antonio Cibotto: 1925-2017. Os quatro conviveram com mudanças substanciais ocorridas na Itália: o fascismo, a Segunda Guerra e a industrialização, “que transformaram radicalmente a fisionomia do território”, como observa Romolo Bugaro, também um escritor vêneto, nascido em Pádua, em 1961.

Dos quatro, quem mais me prendeu a atenção foi G. A. Cibotto, que é como ele assina seu romance lançado em 1961, com o título de Scano Boa.

Scano Boa é uma ilha arenosa no famoso delta do rio Po, que fica a cerca de cinquenta quilômetros de Veneza. Nesse delta está também o Faro di Pila, em português Farol de Pila, situado na margem esquerda do rio Po, com altura de 45 metros e uma potência luminosa de 30 quilômetros. Esse farol foi exaltado pelo poeta Eugenio Montale, um expoente da poesia italiana. É nesse cenário que G. A. Cibotto situa seu romance, que começa com esta dedicatória:

Em memória de Eugenio Montale, que do farol de Pila cantou árias “verdianas” (Nota: poemas que lembram a música de Verdi).

Romolo Bugaro, em nota introdutória ao romance, observa que, em seu autor, “A coisa mais marcante é a força e a intensidade de seu olhar. Um olhar móvel, penetrante, agudíssimo, e ao mesmo tempo distante, sempre focado na profundidade que só ele conhecia.” É com esse olhar que ele constrói a trajetória do protagonista, como afirma Bugaro:

Este breve romance, Scano Boa, é um desesperado, comovente, humaníssimo canto sobre a obstinação e a irredutibilidade do homem. […] O protagonista da história tem tudo contra ele: a corrente do rio, a chuva constante, a névoa espessa, os outros pescadores. Precisa combater para seguir em frente e combate da primeira à última página, sem trégua e sem fôlego.

Outro apanhado da obra é este, fornecido na orelha do livro:

Num delta atemporal, um delta incontaminado e quase mágico, chega um terceto desesperado: um velho pescador, Toni, de acento romano marcado, quase desafiador… a quem lhe perguntava de que aldeia vinha, respondia que vinha daquela do mar…, uma moça, Flávia, “jogada na vida como se atiram os chicletes mascados na brita de pedra dos trilhos”, e um cão “bastardo e feliz” de nome Adolfo. Em Scano Boa, dentro do Delta do Pó, o velho vive sua última e desesperada aventura: a pesca do esturjão, que voltou a povoar as águas.

Numa espécie de versão fluvial de “O Velho e o Mar” (nota: título de romance de Ernest Hemingway), Cibotto volta às terras e lugares que lhe são mais familiares, montando cenas entre as dobras de uma paisagem só na aparência plana e uniforme, ocupada por personagens rudes e inesquecíveis.

Tenho a declarar que é uma narrativa extremamente saborosa, que merece ser traduzida, inclusive tendo como motivo as suas raízes vênetas.

Os Scalabrinianos na imigração italiana do RS

Na história da imigração italiana no Rio Grande do Sul, tornou-se quase uma marca de origem a afirmação de que ela foi construída com sucesso tendo por base a fé e o trabalho.

No primeiro item, o da , uma contribuição fundamental, que deve ser relembrada neste sesquicentenário, foi sem dúvida a dos Missionários Scalabrinianos. Na obra aqui já citada, Contributo alla Storia della presenza italiana in Brasile, publicada em Roma por ocasião do centenário da imigração, foi dedicado um capítulo inteiro sobre a presença dos Scalabrinianos no estado do Rio Grande do Sul, assinado por Mario Francesconi.

Para situar na história, essa congregação foi criada, em 1887, pelo bispo italiano João Batista Scalabrini (1839-1905). A Itália estava já em pleno período da grande migração, e para atender os migrantes é que ele fundou os Missionários de São Carlos e, dois anos depois, a associação laica São Rafael, também para apoiar os migrantes no plano assistencial. Com o objetivo de assistir as migrantes femininas, fez nascer também as Missionárias de São Carlos.

Vinte anos depois do início da imigração, começaram a chegar os primeiros padres Scalabrinianos ao Rio Grande do Sul, que atenderam a região de mais difícil acesso das colônias italianas do estado, conforme relata Mario Francesconi:

Por vontade da hierarquia local, os limites geográficos de sua presença eram circunscritos na região correspondente aos atuais municípios de Encantado, Guaporé, Serafina Correa, Nova Prata, Muçum e em parte de Veranópolis, Bento Gonçalves e Garibaldi. Se tratava da região talvez mais difícil, pela aspereza orográfica, pela falta de estradas, pela escassez de produtividade e de comércio, da assim chamada “zona colonial italiana”.

Na região serrana, a primeira colônia atendida pelos Scalabrinianos foi Nova Prata, que na época se chamava Capoeiras e era distrito de Alfredo Chaves, hoje Veranópolis, com o rio das Antas dividindo o território pelo meio… O P. Antonio Seganfreddo, em 1896, foi nomeado para “permanecer fixo, na qualidade de coadjutor, em Capoeiras”, onde havia cerca de 500 famílias, segundo carta dele aos superiores da Congregação. Segue o relato:

P. Seganfreddo se dedicou logo a um grande trabalho, ajudado nos primeiros anos por uma saúde invejável, embora não fosse mais um jovem. Todo dia saía em giro pelas linhas a cavalo ou a pé, passava dias inteiros no confessionário, era alegre e expansivo com todos. E tinha que trabalhar quase sempre sozinho, em condições ambientais e sociais totalmente primitivas, em colônias muito pobres.

Em 1898 começou a construir uma igreja de alvenaria em Capoeiras, conforme relatou em carta:

“Fiz os preparativos para construir uma nova Igreja, e para animar a população mandei fazer, por minha conta, 10.000 tijolos, mas não terminei ainda o pagamento. Então, para fazer tudo isso recorri aos colonos, e todos corresponderam e vieram em meu auxílio, me trazendo de saída mais de 50 sacos de cimento. […] Fiz também uma economia em tudo, comendo polenta e bebendo o vinho dos Apóstolos, isto é, água!”

Há muitas coisas interessantes escondidas da memória pública!

Em conclusão, fique aqui também registrado que o bispo fundador da Congregação, João Batista Scalabrini, visitou as colônias em que trabalhavam seus missionários no ano de 1904. Foi beatificado em 1997, pelo Papa João Paulo II, e proclamado santo há apenas dois anos, em 9 de outubro de 2022.

Contributo para a história da presença italiana no Brasil

Com o título acima em italiano, foi publicado em Roma um livro por ocasião do Centenário da Imigração Italiana em nosso país, com a primeira parte do volume dedicada à vida dos italianos no Rio Grande do Sul.

O texto-chave é uma longa crônica do professor Gaetano Massa, organizador da obra, que contou com pesquisa de Rovilio Costa e equipe, feita na Colônia de Alfredo Chaves, hoje Veranópolis. Os motivos, segundo Gaetano Massa, foram estes:

A Colônia de Alfredo Chaves, em particular, conservou quase intactos os costumes primitivos. O Rio Das Antas, que a separava das outras colônias, era difícil de atravessar, assim os colonos viveram quase isolados até os anos ’50. Foi só então que a construção de uma ponte sobre o rio permitiu aos habitantes da colônia ter contatos mais frequentes com outros povoados mais integrados na vida do país.

As anotações que seguem são constituídas pelas narrações esparsas dos próprios emigrados e reproduzidas da forma mais acurada possível. Os resultados da pesquisa foram expostos na publicação de um livro de extremo interesse histórico, cultural e sociológico. (COSTA, Rovílio e outros. A Imigração italiana no Rio Grande do Sul. Vda, Costumes e Tradições. Porto Alegre, EST São Lourenço de Brindes, 1975).

Gaetano Massa, com base nessa publicação, elenca os seguintes itens dos costumes coloniais, traduzidos para o italiano:- A importância da água – Construção e modelo das casas – Material de construção – Os móveis – O fogão – A constituição familiar – Datas e comemorações – Aniversários – Casamentos – Festas – Medicina, saúde e higiene – Remédios familiares – Alimentação – Vestuário – O café – A polenta – O filó – A colheita do grão – A vindima – A luz – O açúcar – O arroz – Vida familiar – A religião – Amizade – Namoro – Noivado – Matrimônio – Matrimônio de viúvos – Recreação – Comércio – Transportes – Os tropeiros.

Para dar uma ideia do sabor dessa coleta feita para publicação em Roma, vai aqui a tradução de um trecho do item Transportes:

A carreta era o meio de transporte, talvez o único para cargas pesadas, e era puxada por cavalos ou bois.

O emprego do boi era característico das zonas montanhosas. Os carreteiros profissionais que transportavam madeira ou mercadorias faziam as viagens com seis ou oito mulas; algumas eram de reserva e substituíam as que cansavam ou adoeciam durante a viagem. Antes de partir preparavam o necessário para vários dias: comida e bebida para eles e para os animais, além da capa para se protegerem da chuva. Tinham certeza da hora da partida mas ignoravam a do retorno, as estradas eram dificultosas sobretudo por causa dos banhados. Entre os carreteiros havia uma grande solidariedade: ajudavam-se nas dificuldades e se a alguém acontecia alguma coisa, avisavam imediatamente os familiares.

A vida dos carreteiros era dura e ingrata: quase sempre fora de casa, enfrentando o frio, o vento, a chuva o sol e comendo geralmente, durante a viagem, pão, queijo e salame, e às vezes suportando a fome.

Também em minha família ficou um drama de carroceiro na história. Meu tio-avô, de nome Aurélio (nome que emplaquei no personagem Aurélio Gardone, do meu romance O Quatrilho), morreu num acidente de carreta na entrada de Ana Rech.

O irmão dele, meu avô Guilherme, preferiu ser tropeiro, viajando entre Nova Vicenza e Conceição do Arroio – levando queijo, salame e vinho, e de lá trazendo rapadura, banana e cachaça. Mudou-se para lá com a família e iniciou um processo de integração com a cultura luso-açoriana, raízes de onde eu venho…

Italianos no Rio Grande

Durante a comemoração do Centenário da Imigração Italiana (em 1975), foi publicado um livro com o título Italiani in Rio Grande. Não só o título, mas todo o texto foi publicado em língua italiana, com o patrocínio do IVRAL – Istituto Veneto per i Rapporti com l’America Latina, com o objetivo de ser distribuído entre os estudantes da Itália, para que não esqueçam o precioso patrimônio da história, como expresso na Apresentação.

Quem se encarregou da organização da obra foi o então Reitor da UCS, Abrelino Vicente Vazatta. Participou do trabalho o professor Mario Gardelin, então Delegado do Instituto no Rio Grande do Sul, studioso infaticabile, como refere a Apresentação. Coube a ele localizar os documentos que fizeram parte da iniciativa da região Vêneta. E não escondeu em que fonte os foi buscar: numa publicação comemorativa do Cinquentenário da Imigração Italiana no Rio Grande do Sul. Lembrar essas memórias no sesquicentenário, que está para acontecer, cria uma cadeia entre essas três datas memoráveis.

Foi dessa publicação, feita pela Editora Globo, de Porto Alegre, em 1925, que Mario Gardelin retirou os trabalhos para a iniciativa do IVRAL. Eis a relação deles:

1. Gli Italiani e la Repubblica di Piratiny: texto do escritor Mansueto Bernardi, natural de Veranópolis, que na época já trabalhava na Editora Globo em Porto Alegre. Neste ensaio, ele relaciona toda a participação de italianos na criação da República de Piratini, objetivo da Revolução Farroupilha. São elencados os seguintes personagens: Livio Zambeccari, um bolonhês geógrafo e naturalista, que desenhou a bandeira dos farrapos; Luigi Rossetti, marinheiro genovês, Giuseppe Mazzini, mais tarde um dos condutores da unificação italiana, com Giuseppe Garibaldi; e ainda Francesco Anzani, ao lado de outros nomes menos lembrados.

2. La vita spirituale nelle Colonia Italiane dello Stato, da autoria do Cônego Giuseppe Barea, que seria em 1934 designado bispo de Caxias, o Dom José Barea. Nesse texto, o Cônego Barea faz talvez a primeira análise cultural da imigração italiana, ressaltando o papel da família, da fé e do trabalho. Faz também uma análise histórica das “primeiras lutas do colono”, da construção de igrejas, capelas e capiteis pela região e dos nomes de membros do clero em sua atuação pelas colônias, chegando a Marau e a Erechim.

3. Sacerdoti Italiani che precedettero l’emigrazione: escrito por Don Cleto Benvegnù (1887-1944), que foi pároco em Porto Alegre e criador de escolas. Faz um elenco de todos os quase sessenta sacerdotes italianos que atuaram no Rio Grande do Sul, espalhados por todos os municípios,nos cinquenta anos antes da imigração iniciada em 1875.

4. Il colono italiano ed il suo contributo nello sviluppo dell´industria rio-grandense: um trabalho magistral de Celeste Gobbato, figura marcante na história de Caxias. Assim ele relata a “evolução industrial da colônia”: a) indústria extrativa; b) indústria rural; c) indústria manufatureira; d) indústria comercial. Um texto que continua uma referência obrigatória para a indústria da região.

5. L’opera della donna italiana, assinado por B. Crocetta (nome não localizado), que ressalta o papel da mulher em diversos ramos, da educação à assistência social, culminando com a criação do Hospital Nossa Senhora de Pompéia, “cuja constituição remonta a 12 de agosto de 1913”.

Como remate, o livro reproduz cópia visual de uma carta escrita por Paolo Rossato a seu pai, com data de 27 de julho de 1984.

Preciosidades que devem ser postas ao alcance das novas gerações.

O retorno com o final da saga

Depois da permanência de quase um mês, entre abril e maio de 1937, nas águas termais de Tubarão, o Cônego Donato iniciou sua viagem de retorno, que não deixou de ter incidentes, para ficar com o termo por ele usado em suas Notas de uma Viagem. O trecho até Conceição do Arroio, ou Osório, teve praticamente os mesmos problemas da viagem de ida.

A partir de Osório, na estrada de cimento, que conhecemos pelo nome de estrada de concreto, as coisas começaram a melhorar, conforme este relato:

A viagem continuou sem graves incidentes porque, para dizer a verdade, a estrada de Osório a Gravataí é melhor, e se espera que vai melhorar ainda mais, porque nessa estrada encontramos muitos operários trabalhando para preparar a nova estrada de cimento. Chegamos a Gravataí pelas quatro horas da tarde e sem parar tomamos a estrada de cimento chegando a Porto Alegre pelas cinco e meia. Se durante este último trecho de estrada o nosso carro não tivesse podido prosseguir, se poderia chegar a Porto Alegre por outros meios, porque encontramos muitos veículos se dirigindo àquela cidade.

De Porto Alegre a São Leopoldo, o caminhão continuou andando sobre uma estrada de cimento. O único problema encontrado pelo Cônego Donato foi o do pedágio:

A estrada que vai de Porto Alegre a São Leopoldo é de cimento e para passar é preciso pagar uma taxa, como também se paga de Gravataí a Porto Alegre. Portanto no Brasil se tornou costume pagar quando é preciso passar por estradas públicas.

Mas ter feito todo o trajeto de Gravataí a Porto Alegre e de Porto Alegre a São Leopoldo sobre a “estrada de cimento” gerou outro incidente inesperado: começaram a estourar as câmaras de ar dos pneus.

Até aquele momento era o motor que nos fazia retardar o retorno, mas daí por diante seriam as câmaras de ar. Antes de chegar à ponta de areia que dista cerca de cinco quilômetros de São Sebastião do Caí, se rompeu uma câmara de ar, mas, como havia outra pronta, em menos de uma hora deu para acomodar e continuar a viagem. A segunda câmara de ar rompeu à distância de cerca de seis quilômetros da Baixa Feliz, mas como não era ainda noite e com a luz do dia foi possível ainda remediar, mas demorou uma hora e meia. Chegamos à ponte de ferro da Baixa Feliz com a noite avançada. Paramos na casa de negócio ou venda vizinha e se comprou alguma coisa para comer, e se prosseguiu a viagem bastante bem: para dizer a verdade a estrada é bastante boa, mas chegando a cerca de três quilômetros da Alta Feliz se rompeu a terceira câmara de ar.

Como estavam perto de Nova Milano, decidiram fazer a pé os três quilômetros de distância. Lá tinham conhecidos que poderiam conseguir um caminhão em condições ou um automóvel para seguirem até Caxias. Em Nova Milano, o Cônego Donato foi pedir pouso na casa do vigário, cena assim narrada por ele

Então bem devagar, porque era noite escura, me aproximei da casa canônica e bati na porta e passou meio minuto sem resposta quando ouvi um movimento dentro da casa. Era a velha empregada do Pároco que abrindo uma sacada perguntou quem era que estava batendo naquela hora. Respondi assim:

– É um padre de Caxias que pede abrigo.

– Mas quem é esse padre? – me respondeu a mulher.

– É um certo Dom Ângelo.

– Ah, eu conheço Dom Ângelo Donato. Vou abrir logo.

De fato, depois de poucos minutos aquela boa senhora veio abrir a porta e logo me disse:

– O senhor deve estar precisando comer.

– Não – respondi eu -, eu preciso descansar, eu preciso dormir.

E observando o grande relógio que pendia da parede ela disse:

– É, já são duas e meia, depois da meia-noite.

Todo o relato tem como ponto final a seguinte conclusão, em que se define o culpado de tudo e também lhe é concedido perdão:

A culpa maior é do senhor Eleutério Fracasso, que conhecia em que condições miseráveis se encontrava seu caminhão e a sua pouca prática em conhecer os defeitos do carro em questão. Não basta saber dirigir um automóvel, é preciso também estudar mecânica.

Mas na verdade devo declarar que o senhor Eleutério Fracasso, durante a longa viagem de ida e volta se comportou muito bem. E além de ter gasto muito dinheiro com gasolina, e outras coisas, perdeu tudo…

(E A SAGA FINDA AQUI)

Chegada a Tubarão

De Araranguá a Tubarão, registra o Cônego Donato, “há dez estações de trem, que são: Araranguá, Morretes, Sangão, Criciúma, Içara, Esplanada, Morro Grande, Jaguaruna, Congonha e Tubarão. As mais importantes são Tubarão, Jaguaruna, Esplanada, Criciúma e Araranguá”.

Essa ferrovia catarinense teve sua construção iniciada em 1880, ainda no tempo do Império, para transportar o carvão da região de Criciúma. Até hoje o trem maria-fumaça anima o turismo das cidades ao redor das águas termais de Tubarão. Turismo que já tinha vitalidade naquele ano de 1937. Mas voltemos ao relato original, com detalhes curiosos sobre os costumes do local, e onde ficou registrado que pessoas de Caxias e de Bento Gonçalves iam até lá para curtirem os banhos.

Chegados a Tubarão nos hospedamos no Hotel Cascaes: eram cerca de onze horas da manhã. Ao meio-dia almoçamos e depois fui até a casa canônica pedir licença para celebrar a missa na Capela de São Sebastião, que dista cerca de dois quilômetros do lugar dos banhos. O pároco de Tubarão é um religioso da Congregação do Sagrado Coração de Jesus, vindo da Alemanha, um sacerdote muito zeloso. Na casa canônica conheci dois outros sacerdotes, um nascido na Alemanha e o outro no Brasil.

Na estação de Tubarão encontrei o Sr. Ettore Pezzi, de Caxias, e Ernesto Rubbo, que mora em Canoas. Este último eu o conheci em Bento Gonçalves no ano de 1906 quando eu era Vigário daquela paróquia. Ele é agora bastante rico e vive de renda.

[…] Finalmente depois das três da tarde chegamos à estação de Guarda, que dista cerca de meio quilômetro do lugar dos banhos termais. Guarda não é propriamente uma estação, embora tenha também telégrafo. […] Chegando ao lugar dos banhos encontrei o Sr. Giuseppe Ricardo Cornelli, dono dos banhos, que já passou dos sessenta, viúvo com filhos que moram com ele, homem com bastante saúde e bom conversador. Ele não fala de outros assuntos, a não ser da água termal, e conta coisas maravilhosas de curas, e diz que aquela é uma água santa.

[…] Dá para ver que este lugar de banhos está crescendo. O Sr. Cornelli quer que nos banhos, que são pequenos quartos com tanques de cimento, haja um pouco mais de higiene. Uma senhora de certa idade é encarregada de lavar os tanques depois da saída do banhista, mas esses tanques de cimento não duram muito tempo, porque a água termal as corrói e, como me disse o Sr. Cornelli, deverá trocar e colocar outros melhores.

[…] O clima nessas paragens é bastante ameno, quase nunca cai geada no inverno, de modo que os colonos colhem feijão até no mês de maio. Neste ano os tijolos foram vendidos a 45$000 ao milheiro, que é um preço bem alto, enquanto em outros anos eram vendidos por 20$000 ao milheiro. Dessa maneira podem ser construídas aqui casas de material. Os tijolos vêm transportados de Laguna e depois com barcos a vapor vão a Florianópolis.

À noite às vezes com a luz de uma lâmpada a querosene se podia fazer um jogo de cartas, porque ainda não há ali luz elétrica. Próximo aos banhos há uma corrente de água que desce de uma montanha, de modo que se poderia facilmente obter luz elétrica. Perguntei ao Sr. Cornelli por qual motivo não tinha ainda instalado luz elétrica e ele me respondeu assim: “Veja, Padre, tenho medo de que, represando a água que desce do monte, ali se criem mosquitos”.

Um argumento do qual o Cônego Donato não discordou, porque os mosquitos continuavam sendo uma ameaça permanente para as suas noites de sono, no decorrer de toda a viagem…

(A SAGA SEGUE NA SEMANA QUE VEM)

A ida do caminhão de socorro

Quando chegou o caminhão de socorro, depois de horas de espera e de nervosismo, o Cônego Donato dirigiu-se ao senhor Elto Labes, que chegava “em carne e osso” no comando da operação, com um mecânico e mais um ajudante, para cobrar dele as razões do atraso. Se o pescador tinha ido a Sombrio às onze da manhã para telefonar pedindo socorro, por que ele só chega doze horas depois

– Mas eu recebi o fonograma depois das cinco da tarde – respondeu o sr. Labes. – E procurei vir logo, deixando de jantar. Se o aviso me tivesse chegado antes eu teria atendido com toda a pressa vosso pedido.

Quando o pescador voltou, o Cônego quis saber dele a razão de só ter telefonado depois das cinco da tarde. Segue a narrativa original:

O pescador que andou até Sombrio para telefonar a Araranguá não pôde ligar logo porque o prefeito de Araranguá deu ordem ao encarregado do telefone de Sombrio de não telefonar antes das cinco da tarde. Assim nos contou o pescador quando voltou.

Mas se em Sombrio acontecesse qualquer desgraça, ou se houvesse necessidade do médico, do sacerdote para qualquer pessoa doente, era preciso esperar até as cinco da tarde para pedir socorro em Araranguá ou noutro lugar. Não duvido que aquele pescador esfarrapado tenha mentido.

O atendimento de socorro seguiu este roteiro:

O Sr. Labes deu ordem ao mecânico de aproximar o caminhão do nosso, dando luz, porque era noite, e de colocar a bateria que tinha trazido no carro do Sr. Fracasso. O mecânico e o outro ajudante meteram mãos à obra trabalhando quase duas horas, mas sempre inutilmente porque a velha carcaça não pegava fogo. Eu que naquela altura estava cansado e cheio de sono gritava e solicitava a eles que parassem de se esforçar, abandonassem o carro velho e nos levassem no deles a Araranguá.

Finalmente, cansados de trabalhar inutilmente, perderam a esperança de arrumar o caminhão do Sr. Fracasso, propondo levá-lo de reboque até Araranguá. Mas o Sr. Labes fez saber que a cerca de 15 quilômetros era preciso atravessar uma sanga (corrente de água), e que lá chegando era absolutamente necessário abandonar o caminhão do Sr. Fracasso, porque ele corria o sério perigo de ficar atolado.

Chegados àquele ponto o caminhão velho foi abandonado, ficando nele somente o Fracasso e seguimos viagem para Araranguá. Chegando a Arroio do Silva encontramos o sr. Firmino Gomes (passageiro do caminhão que tinha vindo sozinho a pé). Logo pediu se tínhamos levado conosco as duas valises: ao saber que foram esquecidas no carro do Fracasso começou com choros e lamentações, e esse lamento continuou sem interrupção até Araranguá, de modo que para mim e os outros companheiros era um tormento Tanto que o sr. Carlo Guisen, cansado de ouvir tanta lamentação, pegou a carteira e passou ao Firmino uma nota de 50$000, dizendo-lhe; “Amanhã pegue um automóvel e vá pegar suas valises, que nesta noite estão sendo cuidadas pelo Fracasso. Está contente?”

Finalmente, sem outros incidentes, chegamos a Araranguá pelas 11 e meia da noite. A senhora Labes nos preparou um café. O sr. Labes disse então que a despesa do caminhão da empresa Jaeger era de 150$000 e queria saber quem ia pagar essa soma. Eu disse que a obrigação de pagar era do Fracasso. O sr. Labes deveria ter sido um pouco mais honesto no preço. […]

Depois de muito conversar, fomos dormir. Desta vez pude repousar porque faltavam os mosquitos, mas dormi poucas horas, porque às 4 da manhã vieram bater na porta de meu quarto e tive que levantar porque o trem (para Tubarão) partia às 5 da manhã. Todos se levantaram e se reuniram na sala de jantar para tomar café. […] No escuro e por uma estrada barrenta chegamos à estação ferroviária.

O resto da viagem de ida foi de trem, com trilhos ao invés de barro pela frente! Mas a história não termina. Depois do estágio nas águas termais, há ainda a viagem de volta. Outra vez de caminhão!…

(A SAGA SEGUE NA SEMANA QUE VEM)

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