Jornada de Torres a Araranguá

O percurso de Torres a Araranguá foi tão dramático que é melhor traduzir ao pé da letra (com alguns recortes) a narrativa do Cônego Donato.

Na manhã de 9 de abril levantei bem cedo porque queria celebrar a missa. Fui até a casa canônica, bati na porta mas ninguém respondeu. […] Depois de meia hora tive a graça de celebrar a missa. Retornado ao hotel tomei o café da manhã e como o caminhão demorava a chegar (nota: tinha ficado retido na estrada à noite) entrei no quarto para dormir, mas tinham passado alguns minutos e me chamaram para partir. Saímos pelas 9h30 para Araranguá, sempre em dúvida se chegaríamos naquele dia.

Passado o rio Mampituba (Mantituba, no registro do Cônego) depois de 25 quilômetros pelo Estado de Santa Catarina, o caminhão “que se pode chamar de carcaça velha e caduca” aprontou outra:

Parou como para um viajante que perdeu as forças. O que tinha acontecido? Uma nova desgraça imprevista. O caminhão não podia prosseguir porque a bateria não funcionava mais. Que podíamos fazer para remediar? Não havia remédio nenhum. Voltar a pé para Torres era um caminho muito longo, andar até Araranguá pior ainda.

O dono do caminhão, Fracasso, viu dois pescadores. Aproximou-se para conversar e conseguiu que um deles concordasse em ir até Sombrio para, de lá, telefonar para Araranguá para que enviassem um caminhão de socorro e uma bateria. O outro pescador se ofereceu para preparar peixe frito. O Cônego Donato não deixa de registrar o que o impressionou na figura deles:

São pessoas malvestidas que habitam cabanas pobres, são macilentos, pálidos, raquíticos, com roupas esfarrapadas que chegam a assustar.

O primeiro saiu a pé na direção de Sombrio, que ficava longe, a 12 quilômetros de onde estavam, mas, com isso, os passageiros do caminhão ganharam coragem. Por volta das duas horas, chegou o outro pescador trazendo peixe frito e uma jarra de leite. “Era cerca de uma dúzia de peixinhos de 100 gramas. Como podiam matar a fome de dez pessoas? Se tivéssemos levado pelo menos um pouco de pão! Comemos os poucos peixes. O pescador pediu 8$000, e nós demos a ele 10$000”.

Depois de comer, ficaram andando pela praia de Sombrio, esperando o caminhão de socorro que não chegava nunca.

Quando vi que eram quase sete horas e que a noite estava chegando perdi a esperança de dormir em Araranguá. Pensei em dormir no carro usando como travesseiro minha pequena valise. Anoiteceu e eu não tinha ainda pegado no sono quando meus companheiros gritaram: – Padre, levante, que está chegando o carro de socorro. […] Levantei e, à distância de uns dez quilômetros, vi um carro com uma luz resplandecente e depois de alguns minutos, para nossa grande alegria, chegou o suspirado carro de socorro. Era um belíssimo caminhão da empresa Jaeger, guiado por um competente mecânico e um ajudante, o sr. Elto Labes, com uma bateria e provisão de pão.

O Cônego Donato perguntou ao sr. Labes o motivo de não ter vindo antes, já que ele tinha enviado o pescador a Sombrio para telefonar para Araranguá em busca de socorro às 11 horas da manhã, e o caminhão só chegava agora à noite.

A explicação dada, toda cheia de caraminholas, é matéria para um capítulo inteiro. É quase uma sequência de filme de suspense, do gênero Hitchcock!

(CONTINUA SEMANA QUE VEM)

Dezesseis horas de Gravataí a Torres

Na manhã do segundo dia de viagem, saindo de Gravataí, depois de uma noite de pouco sono por causa dos mosquitos, o Cônego Angelo Donato teve de embarcar no caminhão contra a vontade, segundo seu relato:

No dia 8 levantei cedo, todos queriam partir logo e não me deixaram celebrar a missa. Partimos antes do nascer do sol. No caminho que conduz a Santo Antônio da Patrulha encontramos na estrada muitos trabalhadores que preparavam a faixa de concreto que, como entendi, querem que chegue até Conceição do Arroio. Mas ainda vamos ter que esperar muitos anos até que esteja terminada.

Conceição do Arroio já havia mudado o nome para Osório três anos antes, em 1934. O Cônego Donato usa os dois nomes, sem os diferenciar.

Seu texto segue fazendo comentários sobre a má qualidade da estrada coberta de areia. Além disso, o caminhão, “que podemos chamar de carcaça velha”, tinha de ir parando para trocar a água do motor que fervia como uma caldeira. Depois das 11h, cinco horas depois da saída de Gravataí, chegaram a Santo Antônio da Patrulha, mas não entraram na vila, seguindo viagem até Conceição do Arroio, onde chegaram “meia hora depois do meio-dia, e paramos para refocilar o nosso estômago”

Pelas duas horas da tarde continuamos nossa viagem, com o veículo fazendo suas paradas de costume, e chegamos pelas 4 horas a Tramandaí, que é um distrito de Osório, bastante populoso, é um lugar de banhos de mar, bastante remoto, de modo que para ir à praia é preciso alugar um auto ou caminhão, que passa por uma estrada de ferro. De Osório até Tramandaí a estrada não é boa, nunca foi boa, areia em abundância.

A seguir vêm estas críticas bem contundentes:

O Município de Osório não se interessa pela estrada, e a ponte que atravessa um rio e desemboca no mar, que foi construída pelo governo do Estado, está em completo abandono. A maior parte das tábuas está podre, de modo que é muito perigoso o trânsito. Algumas pessoas interessadas em ganhar alguma coisa colocaram mesas na beirada e quando se passa é preciso pagar 1$500. Um pouco antes de chegar à praia do mar é preciso passar pela areia que é muito densa, e alguém colocou tábuas à guisa de uma escada, para que o automóvel possa passar, senão ele afundaria na areia. E para passar por ela é preciso pagar 10$000. É uma miséria e uma incúria do Governo e do Município que para passar por uma estrada pública é preciso pagar! Na praia a estrada é como foi criada no começo do mundo e se poderia muito facilmente construir uma estrada de ferro até Torres, mas nenhuma autoridade pensa. O interesse principal no Brasil é a política.

Depois de passar também por Capão da Canoa, a viagem seguiu para Torres. A quatro quilômetros da sede da vila, o caminhão teve de parar porque a estrada era estreita demais e os passageiros resolveram seguir a pé, inclusive o Cônego Donato, que passou por estas peripécias:

Como eu seguia atrás e não podia ver o caminho, num certo momento caí como um morto cai. Quando levantei, senti uma dor aguda no joelho direito, mas tive força e coragem para continuar o caminho.

Finalmente, pelas 10h30 da noite chegamos a Torres, cansados, acabados, com a camisa molhada de suor. Fomos bater na porta da casa de Guerino Sartori, que tem um hotel a poucos passos da igreja paroquial de Torres. Vieram abrir dois jovens empregados do hotel. Nos prepararam às pressas um pouco de café e às 11h30 fui repousar num pequeno quarto. Mas assim que apaguei a luz apareceu uma nuvem de mosquitos que quase não me deixaram dormir. Para mim era o mesmo que um doente de asma sofre, gostaria de dormir, mas lhe falta o ar e não consegue, e isto é um cruel tormento.

Tubarão ainda estava longe…

Primeiro dia de viagem no caminhão

Continuando com a “reportagem” do Cônego Ângelo Donato, seguem os acontecimentos do primeiro dia da viagem de Caxias a Tubarão.

Depois de tudo combinado, os nove passageiros embarcaram na carroceria do caminhão e partiram às 5h30 da manhã do dia 7 de abril de 1937, uma quarta-feira. Tomaram o rumo de Galópolis, ao invés de Farroupilha (na época ainda Nova Vicenza), porque naquele dia havia uma corrida de automóvel de Porto Alegre a Lages, passando por Farroupilha e Antônio Prado. Pelas estradas da época, a corrida se estendia por 500 quilômetros e era promovida pelo Automóvel Club do Brasil. Começava a se firmar a indústria automobilística e, com ela, a disputa por maior visibilidade.

E havia, por questões de segurança, controle no trânsito, como registra o relato:

Se fôssemos por Nova Vicenza, nos impediriam de continuar a viagem, pelo menos até que tivessem passado os autos.

Perto da Capela de São Romédio, a primeira construída em Caxias, na saída para Galópolis, encontraram uma senhora indo a pé para a estação do trem. O chofer parou o caminhão e ela contou que tinha recebido um fonograma de Porto Alegre avisando que sua filha estava gravemente doente, por isso ia pegar o trem. Pediu se podia embarcar no caminhão e foi aceita, desembarcando depois em Sapucaia, onde começava a estrada rumo ao litoral norte.

fonograma, que já ligava Caxias com algumas cidades, funcionava assim: o remetente ligava para a companhia telefônica e ditava uma mensagem, que era anotada, datilografada, envelopada e remetida ao destinatário, sendo entregue pelo estafeta. Consta que já havia telefone em Caxias desde 1895.

Quando o caminhão chegou à altura de Feliz, “no ponto em que se encontra a estrada para Nova Vicenza”, receberam ordem de parar, porque “os automóveis começavam a passar em grande velocidade”:

Fomos obrigados a ficar parados mais de duas horas, até passarem todos os automóveis. Naquele cruzamento havia muitas pessoas de origem alemã, que queriam ver a corrida. Finalmente às 10 horas pudemos partir, mas o caminhão, que era bastante velho e com muitos defeitos, parava de quando em quando, principalmente para trocar a água que a cada 10 minutos fervia.

Depois de muitos tropeços, chegaram à noite à vila de Gravataí, registrada com a grafia Gravatahy. Lá se hospedaram no Hotel Brasil, onde jantaram. Depois da janta, o Cônego Donato resolveu visitar o vigário daquela paróquia, o Cônego Pedro Wagner, que tinha sido colega dele no Seminário de Porto Alegre. Apenas por curiosidade: Cônego Pedro Wagner é também nome de rua em Gravataí, além de nome de praça em Cachoeirinha.

Depois de todos os transtornos da viagem de um dia inteiro, também o sono foi complicado para nosso herói e repórter:

Fui dormir perto das 11h30, mas quase não pude fechar os olhos. Quando apaguei a luz chegou uma nuvem de mosquitos sequiosos de meu sangue, e algumas mulheres perto de meu quarto faziam uma conversa animada, até uma hora depois da meia-noite.

O problema dos mosquitos na hora de dormir foi durante muito tempo motivo para o florescimento de uma indústria: a produção de mosquiteiros. No rol de artigos exigidos para ingresso no Seminário de Caxias, em 1950, o mosquiteiro era também obrigatório. Nas lojas de roupas era um artigo de venda garantida. Mesmo assim, não era fácil dormir com a zoada que faziam os mosquitos. Pior ainda sem o mosquiteiro, como no hotel de Gravataí, fazendo o sono se prolongar manhã adentro, como relatou o Cônego Donato…

Um cônego com tino de repórter

Sou detentor, por cortesia de mãos amigas, de um relato manuscrito deixado pelo Cônego Ângelo Donato – hoje nome de rua em Caxias do Sul, no bairro São José –, contando a aventura e as desventuras de uma viagem de caminhão desde Caxias até as águas termais da Guarda, em Tubarão, no Estado de Santa Catarina.

O Padre Ângelo, como o chamavam, era um atento observador e um refinado crítico. Seu relato está recheado de informações e comentários que podem dar uma ideia bem concreta das condições de vida naquele ano de 1937, quando ele fez a dita viagem. Trata-se de uma excelente reportagem, escrita em italiano, com este titulo: 1937: Note di un viaggio.

Vai a seguir um rápido cronograma da vida do autor:

– Em 1863, a 27 de dezembro: nasce na Itália, na diocese de Pádua.

– Em 1899, a 30 de novembro: é ordenado padre em Porto Alegre.

– De 1904 a 1905: é pároco de Antônio Prado.

– De 1906 a 1907: é pároco de Bento Gonçalves.

– De 1908 em diante: atua como coadjutor e depois vigário de Caxias. Nesse cargo, cria comissão para construção da escadaria da igreja paroquial (hoje catedral diocesana).

– Em 1928: recebe o título de cônego.

– Em 1931: quando pároco de Galópolis, integra a Comissão Pró-Bispado de Caxias. A Diocese foi criada em 1934, há noventa anos, que estão sendo celebrados.

– Em 1953, a 6 de agosto: falece em Caxias do Sul, perto dos 90 anos de idade.

De suas Notas de uma Viagem, em que relata a ida de Caxias a Tubarão, em cima de um caminhão, com outros viajantes, traduzo os primeiros parágrafos que, como em toda boa narrativa, prendem desde logo a atenção do leitor:

No ano de 1936 estive em Iraí, nos banhos termais que me fizeram bem, o forte prurido diminuiu, e teria voltado se tivesse encontrado algum companheiro. No mês de março de 1937, o senhor Giovanni Marchet, negociante em Mato Perso, me convidou para me deslocar com ele e outros amigos até os banhos de Tubarão, e aceitei o convite.

Era para partir às 4 da manhã, mas acabamos partindo às 6 e meia. O auto caminhão era do senhor Eleutério Fracasso, filho do hoteleiro Carlos Fracasso. Eu nem sabia que esse Fracasso tivesse caminhão. Os passageiros deviam ser 14, mas na última hora 5 desistiram, e fizeram bem. Eu devia ter feito isso também, ainda mais porque tinham me aconselhado a não fazer aquela viagem.

A gente acreditava que em dois dias chegaríamos a Araranguá. Uma vã esperança…

A primeira questão que ele coloca é para perguntar por que motivo, naquela altura dos acontecimentos, não havia ainda trem ligando Porto Alegre a Torres, se havia trem de Caxias a Porto Alegre, de Santo Antônio da Patrulha a Osório, de Araranguá a Tubarão. Por que razão não se levava o trem até Torres, que já era buscada para banhos de mar e onde havia o hotel de um caxiense chamado Guerino Sartori? Em razão disso, o jeito era ir de caminhão.

E isso é apenas o começo!

Jogo do chinquilho

Encontrei essa referência ao jogo do chinquilho num livro de João Spadari Adami, o nosso barbeiro historiador, em capítulo dedicado às origens das atividades esportivas na Colônia Caxias.

Um dos primeiros jogos praticados, diz ele, era o de “scaie”, palavra que ele traduz por chinquilho, posto entre parênteses. Num primeiro instante, pensei que a informação estava cheia de equívocos, a começar pelo nome do jogo, muito parecido com o de um jogo de cartas primo-irmão do quatrilho, chamado “cinquilho”. Fui ver o que significava “scaie”, e aprendi que é uma forma dialetal do italiano “scaglie”, que significa, entre outras coisas, lascas de pedra. E tem como matriz o verbo “scagliare”, que significa “arremessar”. De onde se conclui que as “scaie” eram lascas de pedra para arremessar num jogo de competição.

No dicionário Houaiss está a informação de que chinquilho é o nome de um jogo, sinônimo de “malha”, que “consiste em jogar rente ao chão essas chapas ou discos a fim de derrubar pequenas estacas colocadas a uma distância convencionada”. E acrescenta entre parênteses: [Desde a invenção do jogo pelos romanos usam-se ferraduras em substituição aos discos].

De fato, Adami informa que no começo o chinquilho era jogado com pedras. Mais tarde, João Fillippini, dono de uma bodega na sede da Colônia, instalou um lugar para o jogo de chinquilho, agora com lâminas de ferro, como devia ser o jogo legítimo. Todos esses enigmas fui decifrá-los no google. Por sorte, hoje existe a web, que acumula mais informações que todas as coleções de enciclopédia das bibliotecas.

O leitor pode ir confirmar: o chinquilho é um jogo surgido em Portugal em data não devidamente apurada. O google dá notícia de que na região de Almeirim realizam-se torneios de chinquilho que duram até quatro meses e reúnem dezenas de competidores. Isso prova, diz a matéria de um jornal local de nome Mirante, que “o chinquilho ainda vive”.

E como é afinal jogado esse jogo? São regras que variam bastante. Mas o básico é o seguinte: A uma distância de 12 a 15 metros coloca-se um cone, que os portugueses chamam de meco, de paulito, e de palito, que serve de alvo para os jogadores lançarem as malhas. As malhas são placas de ferro, que pesam entre 500 e 800 gramas. O jogo tem dois objetivos. O primeiro é derrubar o paulito. O segundo é conseguir que as malhas fiquem o mais próximo possível dele, como no jogo de bochas. A contagem dos pontos é feita de várias maneiras, e podem ser estabelecidas entre os jogadores, que podem jogar individualmente, em pares, ou em equipe. A contagem clássica parece que é alcançar 31 pontos para se ter a vitória.

Duas coisas me encheram de admiração nessa história. A primeira foi a de saber que um jogo de raízes rigorosamente lusitanas tenha sido praticado numa colônia de imigrantes italianos, e adotado na bodega de um deles. Influência, sem dúvida, de hábitos vindos de Santo Antônio da Patrulha, patrocinados por funcionários da Intendência Municipal… A outra foi a de o bodegueiro Fillipini ter adotado placas de ferro, no lugar das primárias lascas de pedra. Lamento não ter sabido disso antes. Na certa, teria posto a cena no romance A Cocanha, para não ficar esquecida, como parece que está.

A marca cultural do empreendedorismo

Heinrich Bunse, um estudioso das línguas de imigração no Rio Grande do Sul, ao escrever sobre os dialetos italianos, por ocasião do centenário da imigração, descreve o ambiente das colônias sinalizando a forte marca do empreendedorismo, trazida pelos imigrantes, nestes termos:

Recrutados os futuros colonos na região do vale do Pó, nas cidades industriais e nas áreas rurais vizinhas, incluíam elas artesãos e agricultores. Acostumados a viver num sistema econômico caracterizado por uma diversificação de produção, trouxeram consigo tanto o preparo como os incentivos para progredir na futura colônia, tirando vantagem dessa situação. (UFRGS, Instituto de Letras, 1975).

Os dados numéricos registrados ao longo de mais de um século dão a dimensão de quanto foi importante a marca do empreendedorismo na cultura do imigrante italiano.

Em 1º de junho de 1910, para comemorar a chegada do trem, o jornal O Brazil, (semanário caxiense fundado em 1909, que pode ser consultado no arquivo digital da Biblioteca Nacional), sob o título de “Salve, Caxias”, noticiava com toda a pompa as conquistas “deste povo laborioso”, e enumerava as empresas em atividade no município:

Existem no município […] 150 casas comerciais de fazenda, miudezas, ferragens e louças; 160 alambiques e 10 engenhos de cana para a fabricação de graspa e aguardente; 71 moinhos, dos quais 6 a vapor; 15 curtumes; 38 serrarias, sendo 17 a vapor; 173 oficinas, 6 olarias, 1 fábrica de pólvora, 2 de pós inseticidas, diversas de mobílias de vime, 1 de tecidos de seda e outra, de relativa importância, de tecidos de lã e algodão, movidos a força hidráulica.

Para complementar a riqueza dessas atividades industriais, o jornal acrescentava ainda a rica variedade do comércio e dos serviços:

Há na vila 50 casas comerciais, 3 farmácias, 10 padarias, 2 confeitarias, 2 fábricas de moer café, 2 de massas alimentícias, 5 cafés com 8 bilhares, quatro hotéis, 1 casa de pensão, várias casas de pasto, 2 fábricas de cerveja, 3 relojoarias, 2 ateliers fotográficos, barbearias, engraxaterias, 1 atelier de escultura, 1 livraria, 2 oficinas de encadernação, 1 tipografia, 2 oficinas metalúrgicas, 4 importantes estabelecimentos vinícolas, etc.

E arrematava com este prenúncio:

Novas trilhas se vão abrir, com a inauguração da via-férrea, à prosperidade econômica da terra caxiense.

Entre as “ferragens” produzidas, a maioria era de ferramentas para a produção agrícola, de componentes para o transporte por meio de animais e de carretas, além de artigos para cozinha. Mas havia também quem produzia espingardas e cartuchos, numa época em que a caça era inda um meio de subsistência.

Por ocasião do cinquentenário da imigração, em 1925, houve uma exposição de produtos industriais de toda a região colonial italiana no parque Menino Deus, em Porto Alegre. No álbum comemorativo dessa data, foram elencados os seguintes números da cidade de Caxias:

– no setor de serviços, havia 207 empresas; no setor industrial, 240, mais 326 no setor de comércio;

Muitos desses empreendimentos não passavam de “fábricas de porão”, como se dizia na época, bem antes da grande expansão industrial. Em pequenas ou grandes empresas, o fato é que a febre do empreendedorismo nunca baixou na história de Caxias do Sul e da região.

O caldo cultural das capelas

Dentro da rememoração da história do sesquicentenário da imigração italiana, e relendo a Istoria de Conceição de Carlin Fabris, é interessante saber como imigrantes isolados, com dialetos diferentes, que começaram a se conhecer no cais de embarque e nos navios a vapor em que atravessavam o oceano para a América, conseguiram construir aqui a vida em comunidade.

Aqui chegadas, as famílias ocuparam colônias de grande dimensão, para os padrões que conheciam na Itália. Viram-se, então, no isolamento, sem o apoio da vizinhança, como a que tinham no país de origem. Procurar formas de agregação era buscar, na realidade, apoio para enfrentar uma série de obstáculos: o de viver no mato, com bichos selvagens ao redor, sem uma alimentação regular e também enfrentando doenças.

O primeiro pilar de apoio para agregar as famílias foi erguido pela religião. O mundo rural vêneto, de onde procedia a maior parte dos imigrantes, tinha na paróquia seu centro de convivência, onde se desenrolava a vida social, além da religiosa. A festa do padroeiro, com o nome quase místico de sagra, nome que foi trazido também na bagagem cultural, constituía o momento marcante do encontro das famílias e de seus vizinhos.

Por isso, uma das primeiras tentativas dos colonos imigrantes foi a de construírem aqui esse espaço de convivência. O sonho era terem seu pároco, sua igreja, mas não havia sacerdotes em número suficiente para serem nomeados vigários por toda a região colonial. A Istoria de Conceição, escrita pelo imigrante Carlin Fabris, mostra que esse desejo era tão forte que sua vizinhança chegou a ser ludibriada por um falso padre.

A criação da capela, nome dado à igreja sem pároco residente, foi a saída encontrada. Em meu romance O Quatrilho, fica bem clara a força dessa instituição, que o filme, nele baseado, mostra também com relevo. Cada capela tinha seu santo padroeiro e realizava a sagra anual numa cerimônia completa: missa, procissão e almoço festivo em comum. Algumas capelas chegaram a ter banda de música, para animar as festas e também para acompanhar os sepultamentos.

Estudos feitos sobre a cultura regional têm mostrado que a capela foi, antes de tudo, a escora para uma cultura da vizinhança, como um fator de sociabilidade das famílias entre si, criando laços de convivência de adultos e crianças e abrindo caminho para laços também matrimoniais. Isso se contrapõe à ideia tradicional de que a capela era apenas um local de prática da fé. Até a escolha do padroeiro se dava por acordo entre vizinhos.

Como relata Carlin Fabris em sua Istoria de Conceição, a escolha de Nossa Senhora da Conceição como padroeira da comunidade foi feita porque a esposa do doador do terreno para a construção da igreja e da praça à sua frente se chamava Maria da Conceição. Mais do que motivação religiosa, portanto, houve o pragmatismo de um acordo de convivência.

Para reforçar a vida em comum, em todas as pequenas comunidades da região de imigração italiana, junto à capela, feita para o culto religioso – o terço rezado aos domingos e a missa mensal –, eram criados espaços para o lazer e a diversão: cancha de bochas, salão para jogar cartas, como a bríscola, o trisset e o quatriglio, e um barracão para assar carne.

Para administrar tudo isso era criada a sociedade da capela, dirigida pelos fabriqueiros, como eram designados os gestores da capela e de seu entorno, incluindo o cemitério. O espírito do associativismo era aprendido, nesse ambiente, desde a infância das pessoas.

História de Conceição da Linha Feijó

Dentro da memória dos 150 anos da imigração italiana, há um capítulo exemplar, registrado por Carlin Fabris, um colono morador do povoado de Conceição da Linha Feijó, a dez quilômetros da cidade de Caxias do Sul, num caderno de 44 páginas.

O título dado por ele a seu escrito foi este: Istoria de Conceição. Foi publicado pelo historiador Luis A. De Boni em seu livro La Merica: escritos dos primeiros imigrantes italianos, numa coedição UCS/EST, em 1977.

Sobre essa Istoria de Conceição redigi um ensaio para um simpósio da ABA – Associação Brasileira de Antropologia, realizado em Campos do Jordão, município paulista na Serra da Mantiqueira. Ela é uma Serra tão semelhante à nossa Serra Gaúcha que até pinheiros do gênero araucária enfeitam a paisagem.

Antes de se chamar Conceição, relata Carlin Fabris, o povoado se chamava Edoardina, ou Eduardina, porque as terras foram concedidas pelo governo do Estado a Eduardo de Azevedo de Sousa, antes de serem repassadas para Feijó Júnior, em troca de obras por este realizadas. Os fatos narrados por Carlin Fabris, como observa Luis A. De Boni, resultam em “um documento ímpar a respeito da formação de uma comunidade na zona de imigração italiana. Trata-se também da obra de um semiletrado e que deve ser lida com a consideração que merece um documento provindo diretamente de uma fonte popular”.

Em meu ensaio, de cunho antropológico, faço as seguintes observações:

– No texto de Carlin Fabris podem ser detectadas diversas camadas de discurso. Há uma camada mais primitiva, identificada nas passagens escritas em dialeto de tipo vêneto e que corresponde, de modo geral, a formas fixas da tradição oral. Uma outra camada reflete claramente o discurso clerical, de que o autor esteve muito próximo, como testemunha sua própria narrativa. Uma terceira camada expressa o discurso oficial da cultura brasileira, perceptível em certas formas fixas da linguagem escolar, que reflete por sua vez a ideologia positivista e republicana, como nesta passagem sobre o papel dos imigrantes: “vieram pra ter progresso e grandeza nesta nova pátria nesta bendita terra do Cruzeiro do Sul Brasil”. Um quarto e último estrato é o representado pelo discurso do próprio autor, no qual é possível ainda diferenciar duas dimensões, uma subjetiva e outra coletiva. A dimensão coletiva corresponderia a certos lugares-comuns culturais, como a afirmação de que “os antigos viviam alegres em meio as dificuldades”, mas que são assumidas pelo autor como uma visão pessoal.

– Para dar um exemplo: Carlin Fabris cita uma frase de Andrea Penaccio, que dizia: “o che se vince o pur si muore”, que se poderia traduzir por “ou se vence, ou se morre”. No contexto em que Fabris escreve, a frase é apresentada como um discurso heroico do “intrépido Andrea”, e é por ele utilizada para reforçar o caráter dos primeiros imigrantes: indivíduos que lutaram fortemente contra o destino adverso e, ao invés de morrer, venceram.

– No contexto em que Carlin Fabris escreve manifesta-se a preocupação de conciliar dois termos opostos: afirmar a diferença da cultura oriunda dos imigrantes italianos e mostrar a identificação dessa cultura com a cultura brasileira.

– Para explicar o êxito dos imigrantes na nova terra, Carlin Fabris refere qualidades trazidas como uma espécie de patrimônio cultural. Vinham da alta Itália e era “toda gente humilde, laboriosa e alegre”, recita ele.

Bem, isso é apenas uma amostra da riqueza deixada por Carlin Fabris em seu caderno com a Istoria de Conceição. Que por sua vez é uma amostra da história das comunidades rurais formadas pelos imigrantes italianos na Serra Gaúcha.

A figura de Guido Cavalcanti em Boccaccio

Giovanni Boccaccio completou, com Dante e Petrarca, a trindade que deu base e fama à literatura italiana. Nascido em 1313, era nove anos mais jovem que Petrarca e quase cinquenta mais jovem que Dante.

Teve relações estreitas com os dois. Foi dele a ideia de dar o nome de Divina Comedia à Comedia de Dante, nome que ficou consagrado por todos os séculos. Com Petrarca, Boccaccio chegou a morar, na primavera de 1363, no Palácio Morlin, cedido a Petrarca pela República Veneziana, durante a Grande Peste, iniciada em 1348, que deixou Florença arrasada.

Quando foi visitar Petrarca e morar com ele, Boccaccio já havia escrito o livro Decameron, em português Decamerão, que poderia ser traduzido por “Dez Grandes Dias”, já que a palavra é composta pelos vocábulos deka (dez), e hémera (dia), do grego clássico, acrescidos do aumentativo.

O tema do Decamerão é a Grande Peste, também chamada de Peste Negra, durante a qual dez jovens florentinos, sete moças e três rapazes, se refugiam num castelo fora da cidade. Lá, como passatempo, decidem que cada jovem deve contar uma história por dia. Como ficam dez dias no castelo, as narrativas chegam ao número de cem. Um número que Dante evitou na Divina Comedia, encerrando-a com noventa e nove cantos.

Com isso, Boccaccio deu início às narrativas de ficção escritas em prosa, e não em verso, gênero que se espalhou depois pela Europa, com autores como Molière, na França, e Cervantes, na Espanha. Nessa obra, Boccaccio escreveu, para se contrapor a Dante, uma “Comédia Humana”. Nome de que Balzac se apropriou seis séculos mais tarde para designar o conjunto de seus romances e contos.

Uma reconstituição visual do cenário, dos trajes, das personagens e de parte das novelas do Decamerão foi feita num filme dirigido pelos irmãos Vittorio e Paolo Taviani, há pouco tempo, em 2014. O título que deram ao filme foi Maraviglioso Boccaccio, num justo reconhecimento da importância do autor. Devo dizer que também o filme ficou maravilhoso, com lindas imagens e grande dose de emoção nas cinco ou seis histórias por eles incluídas no roteiro.

Pois bem, para concluir esta lembrança, tomo a liberdade de citar um conto que tem como personagem Guido Cavalcanti. Todos os depoimentos de seus contemporâneos descrevem Guido Cavalcanti como uma figura fascinante, dedicado ao estudo e à discussão de ideias, com tendência à vida solitária, mas de temperamento forte, audacioso, às vezes temerário. Boccaccio contribuiu para reforçar a lenda com um perfil desenhado no Decamerão, pela narrativa da jovem Elisa, na nona novela da sexta jornada:

“Foi um dos melhores lógicos [loici] do mundo e excelente filósofo natural, […] foi um homem muito elegante e muito bem educado, além de muito eloquente; tudo o que ele quis fazer, e que ficasse bem a gentil-homem, soube fazê-lo melhor do que qualquer outra pessoa. Ademais, era riquíssimo, e sabia honrar, como ninguém, as pessoas que ele, no seu ânimo, considerava que valessem”.

O “filósofo natural”, referido por Boccaccio, significa que Guido Cavalcanti desenvolveu um pensamento afastado da teologia: consta que ele chegou a ser acusado de não crer em Deus. A base de seu pensamento foi a filosofia de Aristóteles, um filósofo da realidade que está em oposição a Platão, filósofo da idealidade. Mas um aristotelismo repassado pelo filtro da análise de Averróis, médico e pensador árabe nascido em Córdoba, na Espanha, que, com Avicena, reintroduziu o pensamento aristotélico na Europa, dando início ao abandono do platonismo herdado de Santo Agostinho e que dominou toda a Idade Média, com um encerramento em alto nível na Divina Comédia de Dante.

Por isso é que Giovanni Boccaccio fez questão de produzir uma “Comédia Humana”…

Muito além de uma bela canção

Para o público leitor, durante muito tempo, o poeta italiano Guido Cavalcanti (1255 – 1300) foi lembrado somente pela canção Donna mi prega.

É um poema de cunho filosófico que teoriza a respeito do amor numa perspectiva considerada averroista por uns, tomista por outros. Ela foi objeto de análise e de comentários interpretativos no período humanista.

É evidente a segurança e a habilidade de Guido no uso da linguagem filosófica, dando a impressão de que o poeta buscava dar uma demonstração de competência intelectual, o que, aliás, é declarado na primeira estrofe e na estrofe final: é a pessoas de mente esclarecida que se dirige a canção.

Para facilitar a compreensão dessa lição de filosofia, opto por fazer uma paráfrase do poema, no lugar de uma tradução, que seria bem mais complexa.

Eis a paráfrase:

A mulher (gênero, e não uma pessoa) me roga, por isso escrevo sobre um assunto que é, muitas vezes, cruel e acerbo a ponto de chamar-se “amor”, que tem “a morte” como expressão derivada. E quem nega que seja assim, venha experimentar a verdade!

Para tanto, exijo um leitor inteligente, pois não espero que alguém de razão limitada possa chegar a entender esta argumentação.

De fato, sem os instrumentos da filosofia natural (distinta da teologia) não conseguirei demonstrar onde amor reside, o que o faz nascer, qual é seu poder e sua força, e também qual a sua essência. E ainda, qual o movimento de ânimo que suscita e de como o prazer, que resulta do “amar”, é representável a ponto de ser percebido pela vista.

O amor adquire forma naquela parte do espírito em que se encontra a memória, e é causado por uma obscuridade que deriva de Marte, da mesma maneira em que os corpos visíveis aparecem por efeito da luz do sol

Ele, o amor, é criado, e por isso não é uma substância, mas uma ocorrência, e adquire um nome quando passa a ser percebido pelos sentidos. Ele brota da visão de uma figura de pessoa quando esta atinge o intelecto e nele se fixa de modo estável.

No intelecto, o amor não possui nenhum poder, porque é tão somente uma qualidade. O intelecto está em contínuo processo de compreensão, e não de provar prazer: ele se limita a “pensar”, e assim não oferece elementos sensíveis de referência. O amor é uma paixão ligada à alma sensitiva, ao passo que a contemplação abstrata do intelecto é uma experiência distinta e separada do amor. O amor não é uma faculdade racional, mas sensitiva. O amor não usa o juízo para raciocinar, uma vez que o desejo substitui a razão: faz mau uso da razão quem se apega viciosamente à paixão.

Da potência do amor resulta muitas vezes a morte, se a força vital que sustenta o homem contra a morte sofre forte obstáculo em seu modo de operar: E isso não porque o amor seja contra a natureza, mas porque não tem domínio seguro sobre si mesmo. Ao mesmo desfecho pode levar o fato de alguém esquecer o sumo bem.

O amor, quando o desejo se torna tão intenso que ultrapassa os limites naturais, transforma o riso em pranto, faz mudar de cor, transforma o aspecto exterior por força do medo; é inconstante, mas tudo isso se encontra com mais frequência em pessoas de ânimo nobre.

O enamorar-se provoca suspiros e ninguém pode se livrar disso, para encontrar descanso, enquanto a mente não entende tudo o que está acontecendo. Nessa condição o amor extrai dos olhos do enamorado um olhar tal que faz a atração evidente: e isso não poderá mais ser escondido depois de se chegar a esse ponto.

As belezas percebidas são como flechas que podem provocar as feridas do amor, porque o desejo é submetido à prova do temor: e o ânimo que é traspassado pela flecha do amor se refina e aperfeiçoa.

O amor não é visível aos olhos: porque a claridade desaparece nele. Privado de cor, além de substância, e posto no escuro, o amor rejeita a luz. Com toda sinceridade afirmo que só de um amor assim nasce recompensa.

Tu, canção, podes andar com toda segurança, por onde te agrade, porque eu te elaborei de tal forma que a tua argumentação será amplamente elogiada pelas pessoas competentes: quanto às outras, tu mesma não desejas ficar entre elas.

Crie um site como este com o WordPress.com
Comece agora