Guido Cavalcanti rompe com Dante Alighieri

As relações de Guido Cavalcanti com Dante Alighieri têm também uma história curiosa. Dante era dez anos mais novo que Guido, e se tornaram amigos porque os dois gostavam de fazer poesia.

De mais idade, Guido era um admirador da poesia de Sordello da Goito (1.200- 1.269) nascido em Mântua, que foi trovador e jogral de várias cortes, e que escrevia em linguagem popular, ou língua vulgar, como se dizia, adotando inclusive a langue d’oc, da Provença em seus textos. Percorreu, como trovador, além de diversas províncias da Itália, também as da Provença, da Espanha e de Portugal. Tudo isso mostra que a literatura nesse período não tinha marcas de nacionalidade, uma vez que não existiam ainda as nações.

A fama de Sordello deve-se, principalmente, a seu retrato desenhado por Dante nos cantos VI, VII e VIII, do Purgatório. No Canto VI, Dante monta uma cena de Sordello com Virgílio, os dois mantuanos, se abraçando:

… uma sombra, comovida,

saiu do lugar onde se encontrava,

dizendo: “Ó Mantuano, eu sou Sordello,

da tua terra!”; e um o outro abraçava.

E nos dois cantos seguintes do Purgatório, Sordello ocupa o espaço central da cena, tal a importância atribuída por Dante à sua contribuição para a arte poética. Existe inclusive um Monumento a Dante, em Trento, com a cena do encontro de Dante e Virgílio com Sordello, numa escultura feita por Cesar Zocchi, de Florença, em 1896. E há em Mântua uma praça com o nome de Sordello.

Monumento em Trento retrata cena do encontro dos poetas

(Foto: Divulgação)

O gosto comum de Guido e Dante pelas trovas de Sordello, origem de sua amizade, não impediu que houvesse divergências políticas entre os dois. A ponto de Dante ter votado a favor do exílio do ex-amigo no Conselho de Florença.

As divergências de Cavalcanti com Dante não ocorreram apenas no campo político, mas também no da visão de mundo. E no da concepção poética. Gianfranco Contini afirma que Guido discordava da sublimação de Beatriz e de sua transposição ao plano transcendente, feitas por Dante na Divina Comédia (cf. CONTINI, G. Poeti del Duecento, vol. II, p.489).

Para arrematar seu repúdio pelo poeta que ajudara a formar, Guido Cavalcanti escreveu um soneto satírico, endereçado a Dante, onde o critica por sua vileza e por seu convívio com a mediocridade. É um soneto de rompimento público de relações, intitulado I’ vegno ‘l giorno a te ‘nfinite volte, do qual segue abaixo uma tradução:

Eu lembro muito de ti todo dia

e te encontro a pensar demais vilmente:

muito me dói por tua gentil mente

e a virtude que em ti se esvazia.

Por muitos tu não tinhas simpatia;

sempre fugias de aborrecida gente;

de mim falavas tão cordialmente

que todas tuas rimas eu recolhia.

Agora não ouso, por tua vil vida,

mostrar que o que dizes me afaga,

nem quero ir a ti, para me veres.

Se o presente soneto muito leres

o espírito nojento que te estraga

sairá talvez da alma envilecida.

Peripécias de Guido Cavalcanti

A biografia do poeta Guido Cavalcanti, mestre de Dante e de Petrarca, foi cheia de peripécias.

Guido nasceu em Florença antes de 1260, por volta talvez de 1255: nunca foi estabelecida com precisão a data. Era filho de Cavalcante Cavalcanti, chefe de uma das casas mais poderosas e temidas dos guelfos: a tumultuada vida política da cidade dividia-se entre os guelfos e os gibelinos, e, mais tarde, entre o partido dos guelfos negros (i Neri) e o dos guelfos brancos (i Bianchi).

Em 1267, depois da Batalha de Benevento, que arruinou quase todas as famílias de Florença, numa cerimônia de paz, foram realizados noivados entre moços e meninos de um partido e moças e meninas do partido oposto, com a esperança de reduzir os conflitos. Guido, um guelfo, então com menos de 12 anos de idade, se tornou noivo de Beatrice (Bice), filha do gibelino Farinata degli Uberti. Mais tarde casou-se com ela, tendo uma filha, Tancia, e um filho, Andrea, de acordo com os documentos notariais de Florença.

Buscando a formação humanística, cultivada pelos grandes de Florença, Guido Cavalcanti foi discípulo de Brunetto Latini, ao lado de quem se tornou membro do Conselho Geral da Comuna, em 1284. Por essa época, saiu em peregrinação a Santiago de Compostela, sem ter seguido até o final. Supõe-se que foi nessa ocasião que Guido visitou Toulouse (Tolosa, em italiano) e conheceu Mandetta (diminutivo de Amande, nome muito comum na França), celebrada numa de suas baladas.

Nesse meio tempo, tornou-se cada vez mais áspero o conflito entre as duas facções guelfas. Corso Donati, chefe dos Neri, odiava Guido Cavalcanti, a quem apelidou de “Cavicchia” (“estaca”), zombando do gosto deste pelas questões abstratas e disputas filosóficas. Donati teria tentado assassinar o poeta durante a viagem a Compostela. De volta a Florença, Guido quis vingar-se e armou uma emboscada contra o rival, mas a flecha errou o alvo.

Para acalmar os ânimos, os Priori (integrantes de um Conselho de nove membros, denominado Signoria, criado em 1282) decidiram, no dia 24 de junho de 1300, com voto favorável de Dante Alighieri, distanciar os dois adversários. A posição de Dante nessa sentença dá a entender que a amizade entre ele e Guido estava de fato rompida, como transparece em alguns sonetos do último. Anos mais tarde, com a vitória definitiva dos Neri, facção radical dos guelfos, coube a Dante o amargor do exílio.

Com outros guelfos da facção branca, Guido foi exilado em Sarzana, na Ligúria, próximo a Gênova: exílio lembrado, ao que tudo indica, na balada Perch’i’ no spero di tornar giammai (“Porque não espero voltar jamais”). Em Sarzana ele ficou doente, provavelmente de malária (o nome da doença deriva, etimologicamente, de mala aria – maus ares…). Atingido pela doença, teve permissão para voltar a Florença, onde morreu, sendo sepultado a 29 de agosto de 1300.

Segue um trecho da balada em que lamenta nunca mais voltar à sua querida Florença, onde vivia sua amada: ele encarrega a balada de levar suas dores ao conhecimento dela. Por ironia, pede que a balada não se deixe ver por pessoas inimigas, porque seria presa também!…

Porque não espero voltar jamais,

balada, à Toscana,

vai tu, lépida e lhana,

direto à minha amada

que é sempre delicada

e te dará honor.

Notícia dos suspiros levarás,

cheios de medo e muita amargura;

e que não te vejam, tu cuidarás ,

pessoas hostis à gentil natura:

pois, certo, para minha desventura

tu serias retida,

o que me angustiaria;

uma morte seria,

com pranto e nova dor.

Um mestre da poesia: Guido Cavalcanti

Os nomes mais lembrados da poesia italiana do século XIII – il Duecento – são os de Dante e Petrarca. Mas os dois tiveram como mestre o poeta Guido Cavalcanti (1255-1300), que não deixaram de elogiar. Por esse motivo, fui também procurar sua poesia e, para degustar em cheio seu sabor, traduzi suas canções, baladas e sonetos, num total de 52 Rime, que foram salvas em arquivos de Roma, Veneza, Florença e Pádua.

O sobrenome Cavalcanti deriva do fato de que nasceu numa família de cavaleiros, tradição iniciada com seu bisavô, em defesa do papado. Ainda jovem, Guido estudou filosofia na universidade de Bolonha, onde conheceu os pensadores aristotélicos Avicena e Averróis.

Para dar um exemplo de sua poesia, fiquei em dúvida entre sua canção mais famosa, Donna mi prega, em que desenvolve uma teoria escolástica sobe o Amor, ou um soneto ou uma balada, nos quais dá um tom mais sensitivo. Modelo que inspirou a poesia provençal e, por decorrência, também a galego-portuguesa.

Escolho então uma balada, Fresca rosa novela, que as editoras atuais colocam como o primeiro poema de sua antologia. É um poema também muito apreciado por Dante, que no seu Vita Nuova, diz: “segundo se crê, (o poeta) deu à sua amada o nome de Primavera e assim a chamava”. Portanto, a “querida primavera” (piacente Primavera– v.2) desta balada não é uma figura retórica, mas o nome atribuído por Guido Cavalcanti a sua amada, cujo nome real era Vanna, ou Giovanna.

Guido Cavalcanti (Reprodução)

Como se pode observar, o poema é cheio de imagens líricas, colhidas da verdura, mas conclui com uma consideração filosófica sobre a essência da natura de sua amada. São três estrofes de treze versos cada uma.

Fresca rosa em botão,

querida Primavera,

por prado e por ribeira

vou gaiamente cantando,

vosso valor louvando – na verdura.

Vossa cara fineza

se renove aos carinhos

de homens e menininhos

nas vias da redondeza;

cantem os passarinhos,

cada um com sua destreza,

manhã e tarde acesa

nos verdes arbustinhos.

Todo o mundo cante

pois que a estação é bem

tal como convém

a uma alteza tal:

pois sois angelical – oh criatura.

De um anjo a semelhança

em vós, senhora, pousa:

Deus, como venturosa

foi minha esperança!

Vossa face formosa

que ultrapassa e avança

sobre natura e usança

é sim maravilhosa.

Entre as mulheres deusa

vos chamam, e é verdade;

tanta é vossa beldade

que eu não sei contar;

e quem pode pensar – além natura?

Mais que a natura humana

vossa fina aparência

a fez Deus: por essência

é que sois soberana;

que então vossa presença

perto me seja e lhana;

não seja ora tirana

a doce providência!

E se parece ultraje

me pôr a vos amar

não queirais condenar:

é o Amor que me força,

contra ele não há força – nem mesura.

Um filme quase etnográfico

Uma frase que nunca esqueci, dita por Lucy Barreto, coprodutora do filme O Quatrilho, foi esta:

– Minha intenção foi a de fazer um filme quase etnográfico.

Esse cuidado com fazer uma reprodução fiel de usos e costumes na filmagem, respeitando a época e os lugares da narrativa, começou pela escolha dos cenários.

O projeto previa como alternativa a construção de uma cidade cenográfica com o estilo dos anos 1930, mas Lucy Barreto pediu à assessoria da UCS para que fosse indicado algum local que poderia servir para esse cenário. Os pesquisadores do Projeto Ecirs indicaram duas cidades: Santa Tereza, às margens do rio Taquari, e Antônio Prado, tombada como patrimônio histórico. A equipe de produção visitou os dois locais e optou por Antônio Prado, inclusive por razões de facilidade estratégica de movimentação.

Também os cenários internos, de capelas antigas, de casas de comércio, de moradia, foram resultado de uma busca com atenção etnográfica, como era a intenção de Lucy Barreto. Para isso, a equipe de produção circulou por todos os municípios da região, como pode ser conferido nos créditos do filme.

Definidos os cenários, outra questão precisava ser resolvida: que língua utilizar nos diálogos, o português, o italiano ou o dialeto vêneto (hoje com o nome de Talian)? Depois de circular por comunidades do interior e observar a fala utilizada pelos colonos, a decisão foi a de utilizar o português com sotaque, modalidade essa que foi treinada pelos quatro protagonistas e todos os figurantes.

Junto com a fala, também a gesticulação foi objeto de imitação dos atores. Gestos contidos, sem espalhafato, a ponto de um crítico paulista escrever que Alexandre Paternost, no papel de Gardone, estava claramente se sentindo mal em cena… Isso depois de ele fazer exercícios cuidadosos de como enfiar as mãos nos bolsos, encolher os ombros, olhar para baixo etc! Não era um comportamento de italiano do folclore paulista!

Para completar o quadro de evocação dos anos da narrativa de O Quatrilho, foram construídas cenas especiais com esse objetivo. Três ou quatro delas se tornaram marcantes: o almoço em família, as missas e festas nas capelas do interior, o filò reunindo os vizinhos para jogar cartas, bordar, cantar e conversar. E também a da visita da casa de Pierina por Teresa, em que Pierina exibe todos os móveis feitos pelo marido Mássimo, num artesanato que Pierina não se cansa de elogiar. A ponto de Teresa, por inveja, querer ter uma cômoda como a que estava vendo. Cômoda que vai ter um papel dramático no decorrer da história…

No filò, um detalhe do filme mostra Teresa sugerindo à Pierina como fazer um bordado perfeito: contando os fios do tecido. Sugestão que Pierina recusa porque vai colocar o bordado “atrás do fogão”, onde ninguém vai olhar de perto.

Toda essa tradição do artesanato foi trazida pelos imigrantes vindos da Itália, há quase 150 anos. Para dar uma pequena amostra dessa vinculação, vão aqui reproduzidas duas cenas publicada num folheto italiano, com o título de Artigianato Artistico nel Veneto. Uma mostra duas bordadeiras como Pierina e Teresa e a outra um marceneiro como Mássimo. Parecem fotografias feitas aqui nas regiões de colonização italiana. Non è vero? Não é verdade?!

As bordadeiras

(Publicação da Regione Veneto/Foto: Sergio Dall’Omo)

O marceneiro

(Publicação da Regione Veneto/Foto: Sergio Dall’Omo)

Para completar, o folheto informa ainda que no artesanato vêneto, “são notáveis os trabalhos com vime e com palha”. Materiais aqui também utilizados para fazer os chapéus e le spòrtole.

Descobrindo Francesco Petrarca

Nem todas as descobertas são planejadas. Até mesmo o descobrimento do Brasil aconteceu fora dos planos. Basta ler a carta de Pero Vaz de Caminha, que ficou espantado e fascinado com o que viu. Escreveu ao rei de Portugal, usando até ponto de exclamação:

Senhor. Neste dia [21 de abril] a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo, e doutras serras mais baixas ao sul dele, de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome o Monte Pascoal e à terra, Terra da Vera Cruz.

Minha descoberta da poesia de Petrarca também não estava nos meus planos de navegação. Sucedeu que fui incumbido de assumir a disciplina de Literatura Italiana na UCS, em toda sua dimensão histórica, do Duecento (século XIII) até a literatura contemporânea. Quando chegamos a Petrarca, uma aluna mais atilada perguntou se estava correto afirmar que Camões fora influenciado pelo poeta italiano. Fiquei de examinar a questão na aula seguinte, com a comparação de textos dos dois poetas.

Com esse objetivo, mostrei aos alunos um soneto camoniano famoso, até por ser uma paráfrase de Petrarca, que começa com estes versos:

Alma minha gentil que te partiste

tão cedo desta vida descontente.

E os comparei com os versos petrarquianos:

Questa anima gentil che si diparte,

Anzi tempo chiamata a l’altra vita.

Para ser mais didático, mostrei também a minha tradução desses dois versos:

“Esta alma gentil que agora parte,

antes do tempo para a outra vida”

A turma foi unânime em reconhecer que havia grande diferença de estilo entre os dois poetas. E que minha tradução estava mais próxima do modo petrarquiano. Nessa hora tive uma sensação de espanto, e de fascinação, como aconteceu com Pero Vaz de Caminha. E assim como ele desembarcou na terra de Vera Cruz, que depois mudou o nome para Santa Cruz, para conhecer de perto a sua paisagem, fui apreciando página por página o Cancioneiro.

Traduzi os primeiros sonetos e, numa outra combinação não programada, tive ocasião de mostrá-los ao poeta Armindo Trevisan, um especialista em Dante Alighieri e em poesia do Duecento italiano. Depois de saborear a minha tradução – como ele mesmo disse –, me lançou um desafio: traduzir todo o Cancioneiro, que tem exatamente 366 poemas.

Tradução do “Cancioneiro” feita por José Clemente Pozenato

Cinco anos depois, concluída a tradução, consultei uma editora paulista especializada na publicação de clássicos da literatura: a Ateliê Editorial, que mantinha parceria com a Editora Unicamp, da Universidade de Campinas. E outra surpresa, para não dizer outro descobrimento, entrou na minha história: a editora já tinha as ilustrações para o livro, feitas pelo gaúcho Enio Squeff, um serrano de Nova Prata, feitas para uma tradução que não tinha sido aprovada pelo Conselho Editorial. De imediato, o editor me telefonou para dizer: “Sua tradução está perfeita e chegou no momento certo”. Solicitou também que alguém escrevesse uma apresentação inicial. Fiz o pedido ao Armindo Trevisan, que estava na origem de toda a viagem pelo mar petrarquiano, que aceitou o convite prontamente.

Em resumo, Francesco Petrarca deve ter feito magias, infiltradas em seus versos, para que eu o colocasse em língua portuguesa respeitando “a musicalidade do idioma original”, como afirma Armindo Trevisan no prefácio!

Francesco Petrarca (1304 – 1374)

Debaixo dos véus

A decisão de escrever minha primeira novela policial – a que dei o título de O Caso do Martelo – aconteceu dentro do quadro de pesquisas sobre a cultura da imigração italiana no nordeste do Rio Grande do Sul, da qual participei, dentro do Projeto ECIRS. Tanto que a vítima do crime tinha sido fotografada e teve seu retrato publicado num documentário do projeto.

Quando aconteceu o crime, chocante para nós, pesquisadores, todos ficamos aguardando o resultado da investigação policial, que não chegou a lugar nenhum. Concluí então que essa falha se devia ao fato de a polícia não conhecer, por debaixo dos véus, a cultura colonial. Como era leitor de Simenon, criador do detetive Maigret, que usava a técnica de mergulhar a fundo nos usos e costumes das pessoas envolvidas nos casos por ele investigados, decidi criar o meu investigador, dentro do mesmo perfil, que ganhou o nome de Pasúbio, que fui buscar num mapa geográfico da Itália.

O sucesso da obra mostrou que eu estava com a razão, o que me levou a escrever outras novelas mostrando diversos ambientes culturais da região serrana. Um crítico mineiro, Manoel Lobato, escreveu, no Suplemento Literário de Belo Horizonte, logo depois do lançamento da novela, o seguinte comentário:

Confesso que a novela de José Clemente Pozenato me entusiasmou. Numa linguagem elegante e perfeita, o autor vai apresentando, com sutileza, o delegado Pasúbio, cuja simpatia faz logo a gente ficar a seu lado, partilhando seu trabalho. (…) Numa técnica surpreendente, o leitor consegue encaixar uma verdade chocante na própria “realidade” que, por si só, já é fora do comum: a morte de um pacífico solteirão num lugarejo em que todos se estimam, sem razões maiores para casos passionais ou, como dizem os jornalistas, “tais gestos tresloucados”.

(In: Suplemento Literário, BH, 13 jul. 1985, p.10)

Tempos depois, a UCS recebeu por convênio, em seu Centro de Documentos, o CEDOC, uma documentação judiciária de Caxias do Sul, da primeira metade do século passado, que se tornou uma fonte de pesquisa de outros fatos escondidos “debaixo dos véus”. Uma delas, de autoria de Cristiane Cauduro Langaro, com o título de O Rosto da Lei, foi publicada pela Editora IMED, de Passo Fundo, em 2006. A obra é resultado de uma dissertação de mestrado, que teve a orientação de Mario Maestri, de quem recebi um exemplar por ele autografado.

É de Mario Maestri o prefácio do livro, a que deu o título de Dez janelas para o passado, numa referência ao fato de que a pesquisa teve por base dez processos judiciais sobre delitos ocorridos entre 1930 e 1945. Essas “dez janelas” mostram casos de violência contra a mulher, abusos sexuais contra menores, e até mesmo uma história de adultério ocorrida em Galópolis: um operário do lanifício, casado, seduziu a empregada da casa. Outro fato curioso é a de um baiano que chegou a Caxias dizendo que era especialista em Ciências Ocultas, sendo capaz de prever o futuro e de praticar magias para resolver casos de amor e pôr fim em doenças. Acabou no tribunal por seduzir uma cliente.

Todas as culturas escondem fatos e situações debaixo de véus. A novela policial e a pesquisa de documentos abrem caminhos que a tradição, seja ela oral ou escrita, não costuma percorrer.

A adolescência de Agostinho

O tema da adolescência sempre teve um papel relevante em todas as culturas, desde a antiguidade. Entre os mitos gregos, pode ser citado Narciso, o adolescente que se encanta com a própria imagem. Édipo também pode ser incluído nessa linhagem dramática.

Sempre foi difícil definir em que consiste a adolescência: se é um período com estrutura própria ou se é apenas uma ponte movediça entre a infância e a idade adulta. Essa indefinição termina se refletindo até mesmo no plano jurídico: basta ver as oscilações sobre os direitos e os deveres dessa idade nos códigos elaborados, em especial no século passado.

Por sinal, o século XX tem sido apontado pelos pesquisadores como o século da adolescência. A indústria cinematográfica se esbaldou construindo narrativas em que o adolescente, ou a adolescente, são protagonistas. Entre os fatos que deram maior visibilidade aos adolescentes costumam ser citados o movimento hippie, na década de 60, a música dos Beatles e os movimentos estudantis dos anos 70. Tudo isso se tornou material de estudo de todas as ciências humanas, em especial da Psicologia.

Pois não se deve esquecer que Santo Agostinho, ainda no século IV, em suas Confissões, dá destaque especial à sua experiência de adolescente. Nessa idade, Agostinho interrompeu seus estudos na escola de primeiras letras e foi mandado de Tagaste para Madaura, uma cidade vizinha, a fim de estudar literatura e oratória, enquanto seu pai juntava recursos para enviá-lo para estudar em Cartago, na época uma metrópole cultural, que era o que ele desejava para o filho. Tudo isso Agostinho relata em suas Confissões. E comenta:

Muitos elogiavam meu pai, que gastava mais do que permitia o patrimônio da família, para pagar a permanência do filho longe de casa para avançar nos estudos. Muitos outros pais, mais ricos do que ele, não mostravam o mesmo interesse pela educação dos filhos.

A seguir relata uma experiência que poderia ser vista como uma descrição freudiana da sexualidade emergente. E o faz sem meias palavras:

Aos dezesseis anos, as necessidades de casa me forçaram a interromper os estudos por algum tempo. Livre de qualquer escola, passei a viver com meus pais e os espinhos das paixões começaram a me azucrinar a cabeça, sem nenhuma mão que os arrancasse. Pelo contrário. Meu pai me viu um dia no banho e notou em mim os sinais da puberdade que se empolgava. Foi contar o que viu à minha mãe, cheio de alegria, dizendo que logo teriam netos.

Nessa idade, seus pais “chegaram a afrouxar as regras do divertimento, sem a costumeira severidade, deixando-me entregue ao desmando de várias paixões”. Até que sua mãe, chamada Mônica, resolveu tomar as rédeas da situação e encaminhar o filho para a moral cristã. Não sem alguma resistência por parte dele, que cometeu até mesmo a malandragem de roubar peras de um vizinho. Episódio que ele relata em detalhes quando adulto, cheio de arrependimento:

Roubei coisas, não por necessidade, mas pelo gosto de roubar. Havia, perto da nossa vinha, uma pereira carregada de frutos, que não eram bonitos nem saborosos. Certa noite, depois de nos divertirmos na praça até o meio da noite, como era nosso costume de jovens, fomos sacudir a árvore para roubar as frutas. Colhemos um monte delas e, depois de provarmos e não gostarmos do seu sabor, as jogamos aos porcos. Nosso prazer era apenas praticar o que era proibido.

Não é cena atual, como parece. Mas da agitada adolescência de Santo Agostinho

As Confissões de Santo Agostinho

Dias atrás trouxe para a cena uma obra de Petrarca – Secretum – em que o poeta trava um diálogo erudito com Santo Agostinho. É evidente que Petrarca tinha conhecimento da obra intitulada Confissões, escrita por Agostinho, que viveu no século IV, entre os anos de 354 e 430. Ele nasceu no norte da África, onde é hoje a Argélia, e estudou em Cartago, onde foi depois professor de gramática e de filosofia.

Sua obra até hoje continua sendo surpreendente. Ele a divide em 13 livros, ou capítulos. No primeiro, de que vai aqui uma amostra, em tradução livre e coloquial, ele rememora sua vida “Do nascimento até os quinze anos”.

Quem poderá me lembrar os pecados cometidos na infância? Porque ninguém está imune do pecado, nem mesmo o recém-nascido com um dia de vida. Qual era então o meu pecado. Talvez o de buscar com avidez, aos berros, os seios de minha mãe. Se eu mostrasse hoje a minha avidez, não mais pelo seio materno, é claro, mas pelos alimentos da pessoa adulta, eu seria com certeza censurado.

Quando menino, fui enviado à escola para aprender as primeiras letras. Eu não entendia a importância disso mas, se me mostrasse preguiçoso, era castigado com vara. (…). Os adultos, e até mesmo meus pais, que me queriam bem, riam dos açoites, o que tornava ainda maior o meu sofrimento.

No entanto, nós, estudantes, continuávamos a cometer faltas, escrevendo, lendo e estudando menos do que se exigia de nós. Não que nos faltasse memória ou inteligência. O fato é que gostávamos de nos divertir, se houvesse um juiz, ele aprovaria os castigos que nos davam, porque eu jogava bola, e isso atrapalhava o aproveitamento nos estudos. Mais tarde, se eu fosse vencido por um colega de magistério numa discussão fútil, me roía de raiva, mais do que quando era derrotado por um companheiro num jogo de bola.

Na verdade eu pecava, ao agir contra as normas de meus pais e meus mestres. E eu desobedecia não para fazer coisa melhor, mas por amor ao jogo, porque gostava de sentir o orgulho da vitória nas disputas. Gostava também de assistir à representação de histórias frívolas no teatro; eram espetáculos que deleitavam os ouvidos e faziam brilhar os olhos. Mas os pais gostam de ver os filhos tendo prestígio nos jogos e até, mais tarde, a participar de espetáculos teatrais. Olha, Senhor, com misericórdia para essas contradições.

Até hoje não sei explicar bem a causa de minha relutância em estudar grego. Que me obrigavam a aprender desde criança. Eu gostava muito do latim, não daquele ensinado nas primeiras classes, mas do ensinado na gramática.

Mas na realidade aqueles primeiros estudos me permitiam, e permitem até hoje, ler qualquer escrito e também escrever o que desejo. Se eu perguntar com que letras se escreve o nome de Enéias, todos os que estudaram, vão dar a resposta exata, seguindo as normas do alfabeto. Eu pecava quando criança porque preferia as ficções poéticas: um mais um, dois; dois mais dois, quatro; era para mim uma cantilena chata. E ficava encantado com a história de um cavalo de madeira cheio de guerreiros e do incêndio de Troia.

Não é de estranhar que eu tenha me afastado de ti, meu Deus, levado por coisas vãs, pois eu tinha como modelo somente mestres que se sentiam aflitos quando cometiam algum erro de gramática ao expor boas ações, e que exultavam narrando em pormenores os seus desmandos…

No segundo livro, Agostinho relembra os seus “dezesseis anos”. A ele se segue o do “jovem estudante” e depois o do “professor”. No quinto livro narra o que muda em sua vida, indo “Da África para a Itália”. Ler suas Confissões é fazer uma viagem no tempo e nas profundezas da psique humana.

Sobre o aprender a ler

Cada leitor tem sua história de como aprendeu a ler. No meu caso, a matriz, ou motriz, do processo foram os livros de uma estante que meu pai chamava de biblioteca.

Ali encontrei os poetas João de Deus e Olavo Bilac, mais os contos de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm, somados aos de Monteiro Lobato e de Simões Lopes Neto, com suas maravilhosas Lendas do Sul.

Acabo de ler numa revista cultural que uma pesquisadora de São Paulo, em levantamento feito entre os anos de 2017 e 2022, “mostrou que alunos que estudavam em escolas em que havia biblioteca tinham desempenho melhor de leitura do que aqueles que estudavam em escolas sem biblioteca”.

Mas não é só a falta de bibliotecas escolares que tem dificultado a formação de leitores. Em exame internacional da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), realizado em 2018, somente dois por cento dos jovens brasileiros têm proficiência na leitura, lá embaixo da tabela com relação a outros países. Os outros são considerados analfabetos funcionais.

Entre os fatores que têm levado a esse resultado tem sido apontado o uso de meios digitais, em computadores e celulares. Há quem pense que esses meios ampliaram o acesso de todos à leitura, em qualquer lugar e em qualquer hora do dia. Mas, por outro lado, há os que apontam que o texto digital é volúvel demais. Não permite, como o livro, parar para repetir a leitura de uma frase, comparar o jogo de palavras, fechar os olhos e imaginar a cena narrada. Ou reler tantas vezes que o texto, em especial na forma de poema, acaba impresso na memória.

Isso aconteceu comigo aos quatro anos de idade, quando fui alfabetizado em casa com a Cartilha Maternal, do poeta português João de Deus. No final da Cartilha, ele colocou um poema, em letras grandes e bem visíveis, que sei de cor até hoje, mais de oitenta anos depois:

Andava um dia

Em pequenino

Nos arredores

De Nazaré

Em companhia

De São José

O Deus menino

O bom Jesus

Eis senão quando

Vê num silvado

Andar piando

Arrepiado

Esvoaçando

Um rouxinol

Mas no fim das contas o que importa é que as pessoas leiam, seja o livro impresso ou digital. Este tem também suas vantagens, como a de fazer consultas para resolver dúvidas eventuais surgidas da leitura. Sem falar que, pelo meio digital, é possível acessar livros de bibliotecas do mundo inteiro. Tudo isso estimula também o cérebro nesta era da velocidade…

Secretum: um segredo quase esquecido

SECRETUM é uma obra de Petrarca, começada em 1347 e concluída em 1354, em Milão… Petrarca a escreveu em latim, uma das dez obras que produziu nessa língua erudita, usada por todos os intelectuais da época.

Em 1379, cinco anos depois da morte de Petrarca, o monge florentino Tebaldo Della Casa conseguiu entrar no ‘escritório’ do poeta. Fez a transcrição completa do manuscrito. Essa cópia chegou até nós. Dela tenho uma edição bilíngue, em latim e italiano, publicada pela editora Mursia, de Milão, em 1992. O título em italiano ficou sendo IL MIO SEGRETO.

Enrico Fenzi, que cuidou da edição, fez o seguinte sumário:

Secretum é ao menos duas coisas junto:

– É o documento da fase mais difícil da vida de Petrarca, marcada pela ruptura das relações de dependência da família Colonna; do impacto terrível da grande peste de 1348, que causou a morte de Laura e muitos de seus amigos mais caros, mais a dolorosa decisão de abandonar Vaucluse para sempre, para buscar na Itália um novo espaço tanto material como moral.

– É também o resultado de uma operação intelectual e literária, empenhada em transcrever, na antessala da velhice, a sua experiência de homem e de escritor, aí incluídas as incertezas, as paixões, a precariedade da vida, dentro das coordenadas de uma biografia ideal de estampa agostiniana (mas sempre aquém da marca radical de uma “conversão”) que a resgate e a torne exemplar.

Obra importantíssima, atravessada por uma fina rede de alusões a outras obras suas, Secretum é uma espécie de Suma do universo petrarquiano. E também a reafirmação de uma irredutível e obstinada verdade pessoal, sempre capaz de redescobrir um sentido na vida e nos seus conteúdos.

Nela, Petrarca constrói um diálogo dele com Santo Agostinho, que lhe foi apresentado pela Verdade, uma linda mulher vinda do paraíso. O diálogo é descontraído, mas cheio de filosofia. Vai aqui a conversa inicial, no primeiro dos três livros da obra.

Agostinho – Que fazes, homenzinho? que sonhas? que esperas? te esqueceste completamente das tuas misérias? Ou te esqueceste que és mortal?

Francisco – Lembro sim, e nunca sem sentir horror quando esse pensamento me vem à cabeça.

Agostinho – Oxalá te lembrasses de fato, como dizes, e te preocupasses contigo! Assim pouparias muito do meu trabalho, uma vez que é absolutamente verdadeiro que não existe nada mais eficaz do que a consciência das próprias misérias e a assídua meditação sobre a morte para desprezar as tentações desta vida e manter o ânimo em meio às muitas procelas deste mundo; e isso não de leve, deslizando na superfície, mas penetrando até a medula dos ossos. Mas receio muito que nesse assunto, como já vi em muitos, te enganas a ti mesmo.

Francisco – De que modo, por favor? Não entendo muito claro o que dizes.

Agostinho – Sim, de todas vossas condições, ó mortais, nenhuma me surpreende tanto, nenhuma me repugna mais do que essa indulgência intencional com vossas misérias, fingindo não conhecer o perigo que ameaça, a ponto de excluir da consideração se ele se apresenta.

Está aí um segredo petrarquiano pouco desvendado…

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