O Monumento ao Imigrante

Por ocasião do cinquentenário da inauguração do Monumento Nacional ao Imigrante (celebrado em 2004), escrevi um texto de cunho teatral, para ser utilizado num vídeo. Aqui o reproduzo em parte, vinte anos depois.

HISTORIADORA: Consumado o pacto com o Governo Federal, podia agora ser erguido o Monumento ao Imigrante. O escultor gaúcho Antônio Caringi foi o vencedor do concurso para escolha do projeto.

(Imagens da maquete do Monumento com voz de Caringi explicando:)

CARINGI: O monumento representa um casal de pioneiros, cheios de fé e de esperança – ela, numa atitude de prece; ele, como que perscrutando o futuro, confiante. O grande obelisco, com cerca de 25 metros de altura, simboliza a Fé, e possui três altos-relevos: distribuição das terras, progresso e defesa da Pátria. A estátua do casal terá quatro metros e meio de altura e será executada em bronze. Tudo isso em cima de uma cripta que será no futuro um museu. O basalto, pedra característica da região, será aproveitado na realização do conjunto monumental, que será construído na entrada da cidade, ao lado da Estrada Federal.

HISTORIADORA: O projeto inicial teria modificações bem significativas. A principal foi a de alterar o nome de Monumento ao Imigrante Italiano para Monumento Nacional ao Imigrante, acredita-se que por sugestão do Presidente Getúlio Vargas. Caringi introduziu mudanças também na forma das estátuas. A mulher deixou de ter as mãos postas em prece e passou a segurar uma criança no colo. E o homem ganhou uma enxada ao ombro e o braço erguido sobre os olhos.

Na Festa da Uva de 1954, finalmente, foi inaugurado o Monumento Nacional ao Imigrante, pelo Presidente da República Getúlio Vargas.

(Discurso de Vargas na cerimônia de inauguração:)

GETÚLIO VARGAS: Brasileiros e brasileiras:

O Rio Grande e o Brasil se encontram aqui.

Este monumento é uma homenagem não apenas àqueles que aportaram nestes rincões abençoados, mas a todos os imigrantes estrangeiros que participaram da obra de engrandecimento material e espiritual da pátria.

Festa da Uva é a apoteótica demonstração da laboriosidade dessa vossa gente empreendedora e progressista, sustentáculo do trabalho, esteio da ordem e fonte de civismo.

Que os céus preservem, na alma de nossa gente, esse admirável senso de solidariedade humana, a fim de que o Brasil, na marcha pelo seu engrandecimento, com o labor de seus filhos e o esforço dos que vêm de outras plagas, se torne cada vez mais a terra prometida, uma nação de nações, um porto de esperança, refúgio de paz.

(Apoteose com imagens do Monumento Nacional ao Imigrante. Música triunfal, brasileira)

Cidade e trem

A chegada do trem, no dia primeiro de junho de 1910, e a elevação da Vila de Santa Teresa de Caxias à categoria de cidade, no mesmo dia, mês e ano, tiveram dois significados importantes para a história de Caxias do Sul: foram um reconhecimento dos resultados conseguidos pelo imigrante italiano até aquele momento e trouxeram muitos benefícios pela consequente abertura de novas perspectivas.

O reconhecimento se dava, agora de forma concreta, pela consolidação das palavras que Júlio de Castilhos havia pronunciado 15 anos antes em visita à Vila de Caxias. Na ocasião, ele criou o consagrado epíteto de “Pérola das Colônias” e anunciou que faria o trem chegar até ela. Era o poder público reconhecendo o esforço do colonizador e se dispondo a criar novas condições de crescimento.

Com o título de cidade, Caxias ganhava novo status político e de cidadania, passando a ombrear com outras localidades já centenárias no Rio Grande do Sul. E a chegada do trem era a confirmação de que também no plano econômico, no social e no cultural, haveria retorno para esse investimento. Nem o trem teria chegado, nem a vila se transformaria em cidade se Caxias não tivesse já feito por merecer.

Os benefícios daí decorrentes podem ser postos em três níveis:

yes No plano econômico, surgiu a possibilidade de investir em produtos de comércio externo, e não apenas para o consumo interno. Com esse propósito, foram feitas tentativas de cultivo do bicho-da-seda, da oliva e da viticultura, todas com apoio do poder público estadual. O cultivo que acabou tendo sucesso foi o do vinho. O chamado ciclo da madeira foi também beneficiado pela estrutura de transporte ferroviário. Ainda no plano econômico, o comércio tomou maior volume e gerou recursos para investimento na indústria, em especial a metalmecânica. Estavam lançadas as bases econômicas para a Caxias do futuro.

yes No plano social, ampliaram-se os serviços nas áreas da educação pública e privada, da saúde, do esporte e do lazer. A instalação de uma unidade do exército nacional foi também um privilégio.

yes No plano cultural, a cidade passou a ter possibilidades de trazer espetáculos de teatro e de música. A vida esportiva, fonte de intercâmbio e integração, surge com toda a força já na década começada em 1910. Os clubes sociais crescem e se multiplicam; a imprensa vai se tornando cada vez mais ativa.

Em resumo, os dois fatos – a chegada do trem e a elevação à categoria de cidade – criaram os rumos para a Caxias que conhecemos. Se não tivessem acontecido, nossa história e nosso perfil de desenvolvimento, de que tanto nos orgulhamos, teriam sido bem outros.

É verdade que o trem não está mais sendo usado para esses benefícios, mas seu valor simbólico segue inalterado. Para alimentar meu orgulho pessoal, a filmagem de O Quatrilho criou uma oportunidade para o trem visitar Caxias do Sul pela última vez, levando depois essa imagem para o mundo. E a arquivando na memória da cidade.

Imigração alemã no RS é bicentenária

Embora o Governo do Estado tenha decretado que o ano de 2024 é o ano do BICENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ALEMÃ, não se tem percebido muita repercussão do evento. Foi diferente no ano da comemoração dos 150 anos da imigração alemã, no ano anterior ao do Centenário da Imigração Italiana. Na ocasião, os dois eventos foram conjugados numa série de projetos culturais que ficaram marcados na memória.

Uma das iniciativas então tomadas para marcar a presença da cultura de origem germânica no Estado foi a criação, em 1994, da Rota Romântica. Ela deu formato a um roteiro turístico englobando 13 municípios com etnicidade de origem alemã. Para quem não se lembra, são eles: São Leopoldo, (onde se instalaram os primeiros imigrantes alemães), Novo Hamburgo, Estância Velha, Ivoti, Presidente Lucena, Dois Irmãos, Morro Reuter, Santa Maria do Herval, Picada Café, Nova Petrópolis, Gramado, Canela e São Francisco de Paula. Sim, também São Francisco de Paula, onde há um distrito com o nome de Rincão dos Kroeff, lugar em que passei minha infância e adolescência. Já lembrei aqui que havia uma banda de música, formada por alemães procedentes de Taquara e de Nova Petrópolis, sob a batuta de José Ternus, para quem meu pai fez um violino.

A ideia da Rota Romântica gaúcha teve como matriz a região da Rota Romântica da Alemanha – a Romantische Strasse – que se estende entre as cidades de Würzburg e Füssen, na Baviera. Lá são 28 cidades ao longo de quase 400 quilômetros. Como na Alemanha, os objetivos do projeto – lá criado para recuperar a região da Baviera depois dos destroços da Segunda Guerra Mundial – foram os de incrementar o turismo e a importância da identidade cultural e da autoestima das comunidades da região: “para que seus hábitos, usos e costumes caracterizem o eixo comum que entrelaça os municípios participantes: a origem germânica”, como define ao pé da letra o Projeto da Rota Romântica gaúcha.

O ponto alto da celebração deste bicentenário em curso é o dia 25 de julho. Não por acaso foi ele escolhido para ser o Dia do Colono. A definição dessa data para homenagear o agricultor ocorreu em 1924, ano do primeiro centenário da vinda de imigrantes alemães para o Rio Grande do Sul.

Também em Caxias do Sul os imigrantes alemães e seus descendentes deixaram suas marcas. Basta lembrar que Abramo Eberle teve como sócio numa ourivesaria, fabricante de joias em prata, ouro e platina, um cidadão chamado Reinaldo Kochenborger. E que as famílias alemãs instalaram o primeiro curtume à beira do Arroio do Tega. Não por acaso, também a primeira cervejaria. Isso sem esquecer que o início do cultivo de videiras nas colônias italianas foi com cepas de uvas vindas das colônias alemãs.

Na Festa da Uva que tive a honra de ajudar a construir como Secretário da Cultura, em 2006, com o tema A Alegria de Estarmos Juntos, cantado com a música inesquecível de Mário Michelon, tive o cuidado de inserir a participação dos alemães na construção da história de Caxias do Sul.

Seu bicentenário é, por muitas razões, uma data a ser celebrada não só no Vale dos Sinos e às margens dos rios Caí e Taquari, mas em toda a Serra Gaúcha. Para ser justo, em todo o Rio Grande do Sul. Para ser ainda mais justo, em todo o Brasil!

A terra do moscatel

Há cinco anos o município de Farroupilha recebeu, por lei federal, o título de Capital Nacional do Moscatel. Agora, a prefeitura farroupilhense acaba de criar o programa Terra do Moscatel como novo roteiro turístico, a ser lançado oficialmente neste dia 22 de março, no Santuário de Caravaggio. Desse roteiro do moscatel fazem parte nove vinícolas do município.

Agora vou contar um segredo que poucos conhecem. Quando escrevi a novela policial O Caso do Martelo, eu precisava de elementos para compor o cenário visual de uma pequena vila da nossa colônia italiana. O desenho deu certo, tanto que a novela foi gravada em filme como Caso Especial da TV Globo. O nome fictício que dei ao vilarejo, na novela, foi Santa Juliana. Não por acaso. Santa Juliana é a padroeira de Mato Perso, 4º distrito de Farroupilha.

Quando escrevi essa novela, não tinha ainda entrado na capela de Santa Juliana, para ter a surpresa que tive anos depois, quando fiquei sabendo que a Santa ficou célebre porque amarrou o diabo. Ela nasceu no século III em Nicomédia, atual Turquia. Como era cristã, recusou-se a casar com um jovem pagão e foi colocada num calabouço, onde recebeu a visita do diabo que tentou convencê-la a se casar com aquele moço. Ela resistiu à tentação e foi decapitada, mas ficou como exemplo para as cristãs e os cristãos do mundo inteiro. O escultor Nino Rigo, um napolitano seu devoto, foi quem criou a imagem que se encontra reproduzida na capela de Mato Perso. Nela, Santa Juliana segura o diabo preso numa corrente de ferro. Muitas histórias sobre essa imagem são contadas na comunidade.

Quando Paulo José veio fazer a gravação da novela, fui com ele até Mato Perso, para mostrar o cenário de origem da história. Ele também se espantou com a imagem de um diabo no altar. E depois, voltando pelo Travessão Alfredo, em Flores da Cunha, ele fez parar o carro e disse aquela frase histórica: “Aqui vai ser a Santa Juliana!”. Como acabou sendo.

É de Mato Perso um espumante moscatel que aprecio muito, produzido pela vinícola Giacomin. Tive um colega da família Giacomin, natural de Mato Perso, nos meus tempos de ginásio. É de lá também o vinho que faço o Inspetor Pasúbio tomar durante sua investigação do assassinato a golpes de martelo em Santa Juliana.

Outra vinícola de Mato Perso foi criada pela família de Antonio Basso. Para ela escrevi um texto, dando uma imagem poética do lugar, que tomo a liberdade de reproduzir em parte:

“Mato Perso é um desses lugares em que a gente se embriaga só de olhar: são encostas vertiginosas, vales cheios de promessas, cascatas que fazem respirar fundo. Não bastasse essa magia, os parreirais espalham tapetes suspensos, convidando a voar numa viagem ensolarada. (…)

Mato Perso pode se considerar um paraíso. Salames inesquecíveis, queijos macios e provocantes, pães um pouco menos que divinos. Mas nada disso seria perfeito se não houvesse o vinho.”

Ali pode-se beber um vinho rústico de uva Isabel, mas também um inesquecível espumante moscatel. Por isso, a iniciativa de se criar um roteiro turístico pela Terra do Moscatel é um convite tentador. De tentação virtuosa, com a proteção de Santa Juliana! Não só para visitar Mato Perso, mas toda Farroupilha. Incluindo Salto Ventoso, onde foi filmada a principal cena de amor do filme O Quatrilho, com Teresa e Mássimo…

Filme biográfico é oscarizado

Nesta 96ª edição do Oscar, um filme foi premiado com nada menos que sete estatuetas, coisa rara de acontecer. Ainda mais se tratando de um filme que foge dos esquemas espetaculares do cinema de ação e de efeitos especiais, para se concentrar na biografia de um cientista: J. Robert Oppenheimer (1904-1967). Tão personalizado que até o nome dele foi usado para título do filme, contemplado com o Oscar nos seguintes itens:

enlightened Melhor filme

 Melhor direção

 Melhor ator

 Melhor trilha sonora original

 Melhor direção de fotografia

 Melhor montagem

 Melhor ator coadjuvante

Verdade que essa premiação foi criticada pela mídia ao redor do mundo, por dois motivos principais. O primeiro pelo fato de a narrativa se concentrar na figura do físico Oppenheimer que, no Projeto Manhattan, contribuiu para o desenvolvimento da bomba atômica. O outro resulta do fato de que se trata de uma personalidade muito exaltada na cultura americana, como “o pai da bomba atômica”, o mesmo não ocorrendo no restante do planeta.

Divergências sempre existem em qualquer tipo de avaliação crítica ou de arbitragem, mesmo no futebol… No caso do cinema, além das discordâncias de fundo artístico, existem também as de cunho econômico, já que o cinema é considerado não apenas uma arte, mas uma indústria, dentro da cadeia do entretenimento.

Olhando-se de um ponto de vista puramente cinematográfico, o fato é que fazer um filme biográfico é muito difícil. Ouvi essa declaração de um cineasta de longa trajetória há poucos dias.

Vários problemas dão de frente com os encarregados do roteiro e da direção, a começar pelo ângulo a ser adotado para construir a trama narrativa: a luta é do personagem consigo mesmo, ou dele com os possíveis parceiros, com o contexto moral, com o contexto econômico, com o quadro político? No plano emocional, para cativar o espectador, o que pode ser mostrado sem ferir a imagem do biografado?

Mas quando todas essas escolhas são bem feitas, de modo convincente, e as técnicas de construção funcionam bem – ator principal, fotografia, montagem, trilha sonora etc. – conduzidas por uma direção competente, o resultado pode levar a uma penca de estatuetas! Como aconteceu com Oppenheimer, que tinha a charmosa Barbie como deslumbrante competidora…

Mas o Oscar é assim mesmo: quem espera ganhar, não ganha. Sei por experiência própria!

Uma saga deliciosa

No clima da celebração dos 150 anos da imigração italiana no RS, nada satisfaz mais do que abastecer a memória com lembranças do que aconteceu nesse período. Essas lembranças aparecem pelo menos em dois calibres: o da história de cunho público e o das sagas de cunho particular.

Dentro desse segundo calibre, acaba de ser publicado um livro com o título de A Saga de uma Família Italiana. A autora da obra assina este nome completo: Carmencita Maria (Piccoli Aguzzoli) Bento Alves. Os dois sobrenomes italianos, que ela põe entre parênteses, são os herdados de sua mãe e de seu pai: Carmen Piccoli e Adelino Aguzzoli. O sobrenome Bento Alves tem origem num personagem de atuação política marcante para a cidade de Caxias do Sul: Rubem Bento Alves.

Tive a honra de ser convidado a escrever a apresentação que aparece na “orelha” do livro, e que reproduzo aqui:

Nesta obra, construída com muito empenho e carinho, Carmencita realiza um percurso cativante pela história da família. Além das pessoas, estão aqui presentes situações e cenários bem desenhados do ambiente da cidade de Caxias do Sul. A narrativa de Carmencita tem o foco principal em sua mãe, dona Carmen, o que serve de exemplo do quanto foi importante o papel da mulher na construção do modo de viver nas colônias italianas. Uma obra, portanto, para ser lida com muitas descobertas.

Um exemplo dessas descobertas é o da origem do nome da “Barragem da Maestra”, represa que abastece de água a cidade desde o início do século passado. Ela entrou na história da família porque o menino Adelino, que viria a ser o pai de Carmencita, ia a pé do centro de Caxias até o morro da represa, para frequentar as aulas de uma Professora – Maestra em italiano – que morava lá perto. Ele caminhava “em torno de 10 km ida e volta, às vezes acompanhado de um amigo; outras, sozinho” (pág. 20).

O nome da professora – e aqui a pesquisa nas fontes se junta à memória pessoal – era Luiggia Morell, nascida em Treviso em 1842. No navio, conheceu Giovanni Marchioro, nascido em Feltre em 1831, e os dois casaram em Caxias do Sul, indo morar na saída para Nova Trento, a atual Flores da Cunha, próximo do local onde seria construída a represa. Carmencita dá ainda mais detalhes:

“Até onde se sabe, Luiggia dava aulas por conta própria, na sua residência, para os filhos dos colonos. Depois de certo tempo, o governo da Província a contratou como professora de classes mistas na 7ª Légua.”

Fique isso como amostra. Percorrer as páginas do livro leva, como afirmei na apresentação, a percorrer situações e cenários bem desenhados. Desenhos que permitem uma reconstituição visual, e também sonora, de como se vivia na cidade em tempos passados, tempos que o livro torna presentes. A obra pode até mesmo servir de subsídio para a composição do figurino de crianças, mulheres e homens, jovens e idosos, colonos ou citadinos, no caso de se fazer um filme contando histórias desse período…

Como afirmei no título, trata-se de uma saga deliciosa!

A força (e a fraqueza) do sobrenome

O jornal italiano Corriere Della Sera publicou recentemente (em 24/02/2024) uma entrevista intrigante, mas também reveladora, de canais ocultos dos dramas humanos.

A entrevistada é Alessandra Mussolini, neta de Benito Mussolini, nascida em 1962 e hoje deputada do Parlamento Europeu. A frase dela que dá título à entrevista é esta: Por causa do sobrenome tive que deixar o cinema. Isso sucedeu mesmo não tendo ela nem conhecido o avô, que morreu em 1945, colocando ponto final na Segunda Grande Guerra.

Também no ramo materno Alessandra enfrentou problemas com o sobrenome. Seu avô materno se chamava Ricardo Scicolone, que teve duas filhas: Maria, que viria a ser a mãe de Alessandra, e Sofia Scicolone, que riscou o sobrenome, muito fraco talvez, e passou a ser conhecida como Sophia Loren.

Alessandra, seguindo os passos da tia Sophia Loren, também iniciou carreira no cinema. Com quinze anos de idade, em 1977, participou do elenco do filme Una Giornata Particolare (em português: “Um dia muito especial”), ao lado da tia e de Marcello Mastroianni. Na entrevista, Alessandra conta que, como estava muito frio no set, vestiu um casaco de lã que não combinava com o figurino porque “era totalmente anacrônico para a época em que era ambientada a película”. Mas a cena agradou o montador “e acabou dentro do filme”.

Seis anos depois, em 1983, Alessandra fez parte do filme Il Tassinaro (O Taxista), dirigido por Alberto Sordi, nos estúdios da Cinecittà, em Roma. Dessa filmagem, Alessandra lembra o seguinte na entrevista

“Sordi era um grande cineasta. Fiz o teste, me aceitou em seguida. O filme foi de muita fadiga porque a produção queria economizar nas tomadas e Alberto, que era o diretor, nos fez gravar todas as cenas noturnas numa única noite.”

O terceiro diretor com quem Alessandra fez o teste exigido para entrar num filme foi Dino Risi (1916-2008). Depois do teste, ele disse que ela era muito bonita, mas muito magra e de olhos muito claros. Alessandra quis saber por que não era aceita. “Dino Risi me disse isto na cara: – Queres fazer cinema com esses olhos que lembram teu avô? Pelo menos muda o sobrenome.”

Alessandra pediu uma sugestão e Dino Risi respondeu:

– Zero.

– Sobrenome Zero? – perguntou ela.

– Isso mesmo: Alessandra Zero.

Depois disso, Alessandra viu que o caminho do cinema estava fechado para ela e se matriculou no curso de Letras. O sobrenome continuou lhe dando problemas, vindos “de muitas ofensas e muitas manifestações”. Foi então para o curso de Medicina, no qual se formou em 1994, fazendo depois o mestrado em Angiologia. Mas também no exercício da profissão de médica continuou tendo de aguentar piadas e provocações.

A partir daí, decidiu entrar na carreira política e, dessa vez, teve sucesso. O sobrenome atraiu votos suficientes para ingressar no Parlamento Europeu

Como ensinou Camões:

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança:

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades”.

José Bernardino: o meu personagem

Em meu romance A Cocanha, ocupa um bom espaço de cena o personagem José Bernardino, um funcionário da Comissão de Terras que faz anotações para escrever um romance realista, no estilo da Machado de Assis, sobre o ambiente criado pelos imigrantes italianos na Colônia Caxias. Não é um personagem fictício, mas baseado numa pessoa real, chamada José Bernardino dos Santos. Foi uma estratégia, ou um truque, que utilizei para ter um observador atento do que acontecia naquela “selva selvagem, áspera e forte”, como dizem os versos de Dante Alighieri, que deu nome à primeira praça da futura cidade.

José Bernardino dos Santos, pessoa real, nasceu em Porto Alegre em 1848 e veio para Caxias em 1886, onde faleceu em 1892, aos 44 anos de idade. No capítulo 11 da parte Dois do romance, ofereço seu perfil completo. Não sou eu quem toma a liberdade de caracterizá-lo como um “rebelde”: ele mesmo se denominou assim em sua autobiografia, a que deu o título de Memórias de um Rebelde.

Seu percurso histórico foi mesmo fora dos padrões. Era funcionário da Tesouraria da Fazenda do Rio Grande do Sul quando decidiu servir como Voluntário da Pátria na Guerra do Paraguai. De lá voltou antes do fim da guerra, por motivo de doença, e reassumiu o cargo na Fazenda, ingressando também no Partenon Literário, “onde fez-se notar como jornalista, dramaturgo, poeta, romancista e orador eloquente”… como relata Guilhermino Cesar em sua História da Literatura do Rio Grande do Sul. De lá, decidiu subir a Serra como funcionário da Colônia Caxias, ao que tudo indica para melhorar de uma doença que lhe atacava os pulmões.

Em Caxias manteve também uma vida literária. Quem deixou isso registrado foi ninguém menos que João Spadari Adami, no Primeiro Tomo de sua História de Caxias do Sul. De acordo com Adami, dois poetas funcionários da Comissão de Terras – Bento de Lavra Pinto e José Bernardino dos Santos – se divertiam, e divertiam a assistência, declamando versos de sua autoria. Adami transcreve duas quadrinhas que ele encontrou escritas, e que reproduzo em meu romance, em que os dois poetas se desafiam.

Segundo Adami, esses desafios poéticos ocorriam “no prédio nº 858, à Rua Marechal Floriano, de propriedade de Nicolau Luis Amoretti, prédio onde havia um albergue e onde estava instalada a primeira agência do Correio de Caxias e o primeiro salão de bilhar também” (Op. cit,, p. 252).

Outra fonte em que me abasteci para construir esse personagem, e as situações por ele vividas, foi a dos relatos a mim feitos por Mário Gardelin, que na época em que projetei e escrevi o romance era meu colega na reitoria da Universidade de Caxias do Sul. Mário Gardelin, ao participar da fundação da Academia Caxiense de Letras, escolheu, não por acaso, o nome de José Bernardino dos Santos como patrono da Cadeira nº 1. Cadeira que ele, Mário Gardelin, ocupou como acadêmico. Foi ele quem me deu os elementos para reconstituição dos últimos dias do poeta em Caxias, onde faleceu e foi sepultado. Uma sequência que também reconstituo no Capítulo 11 da parte Três do romance.

A única falha que percebi na história de José Bernardino dos Santos foi a de que seu nome, ao contrário do que acontece com seus colegas da Comissão de Terras, não foi perpetuado em nenhuma rua ou logradouro de Caxias do Sul. Talvez não seja tarde demais para corrigir essa falha!

Para concluir, fica a ressalva que ponho no final de meu romance:

“Os fatos narrados são fictícios, mesmo quando se referem a lugares e pessoas conhecidos.”

Um escritor em língua Talian

Um nome inesquecível, que também marcou a trajetória cultural dos 150 anos de imigração italiana, foi o de Mário Gardelin (1928-2019). Para reforçar nossas relações de amizade, ele lembrava que nós dois somos naturais de São Francisco de Paula. Até mesmo num livro de sua autoria escreveu esta dedicatória: “ao meu mestre e conterrâneo de Cima da Serra”. Acontece que ele nasceu no distrito de Vila Seca, que não pertencia ainda a Caxias do Sul.

Mais conhecido como jornalista, foi um grande pesquisador da história da imigração italiana, da história de Caxias do Sul e da história da Câmara de Vereadores local, de 1892 a 1950, acumulando um manancial de publicações. Mas dentro de seu perfil cabia também o papel de escritor, como poeta e ficcionista, sendo inclusive um dos fundadores da Academia Caxiense de Letras.

Sua obra literária de maior destaque, em minha opinião, é a narrativa em língua Talian com o título de Far la Cucagna. Foi publicado em 2003 pela EST Edições de Porto Alegre, com prefácio (na realidade Presentassion) de Rovílio Costa (1934-2009), outro gigante na construção da pirâmide da memória dos 150 anos da imigração italiana no RS. Nessa apresentação, justifica o título da obra de Gardelin com estas palavras:

“El sogno de catar la cucagna el se ga fato vero al Far la cucagna”: (o sonho de buscar a cocanha se tornou realidade ao se fazer a cocanha)…

O autor informa na orelha do livro, entre outros fatos, o seguinte:

“A narrativa Far la Cucagna está vinculada à Sucursal do Jornal do Comércio, de Caxias do Sul. Foi-me aberta a possibilidade de escrever em Talian. Comecei em 7 de fevereiro de 1989. Segui normalmente até 5 de julho seguinte. Aí foi encerrada a publicação de meus textos. A razão invocada: ninguém, na redação, entendia o Talian. (…) O Jornal do Comércio foi o primeiro diário que abriu espaço ao Talian. Teve leitores entusiasmados”.

A narrativa se compõe de 54 textos, cada um deles em formato compatível com uma coluna de jornal, numa sequência narrativa que tem início na Itália. A família Alba faz todo o percurso, desde sua saída, com o capítulo Fioi, se parte (Filhos, vamos partir!), até sua conclusão com o capítulo Monumento, coisa que nenhum dos imigrantes, poareti, iria imaginar:

“Poareti, si, parché i gávea vinto, sensa saverlo. Robe de tere nove”: (Pobrezinhos, sim, porque tinham vencido sem saber disso. Coisa de terras novas).

Além de ser uma galeria de memórias, o livro Far la Cucagna tem também todo o caráter de um ensaio antropológico. Nele, Mário Gardelin explora não apenas as surpresas com o mundo físico da floresta e do campo, mas, de modo especial, as surpresas das relações com a variedade cultural encontrada, com ênfase particular na presença dos negros que Na volta ghe zera schiavi: (uma vez eram escravos).

É evidente que, para captar as minúcias do percurso dos imigrantes nessa narrativa, é necessário ler toda ela, o que, para os que dominam o Talian, é um belo estímulo para a inteligência…

A pesquisa nos 150 anos da Imigração Italiana no RS

A Universidade de Caxias do Sul divulgou há duas semanas seu “Calendário acadêmico e cultural alusivo aos 150 anos da Imigração Italiana no RS, num programa que contempla dezenas de ações ao longo de 2024 e 2025”.

No centenário da Imigração Italiana, também a UCS criou um programa de recuperação da memória e dos valores culturais da imigração. O principal marco foi a criação de um Instituto para realizar as pesquisas e as articulações necessárias. Ele teve a designação de ISBIEP – Instituto Superior Brasileiro-Italiano de Estudos e Pesquisas -, decorrente de proposta formulada pelo professor e pesquisador Ciro Mioranza, que havia estudado 10 anos na Itália. O nome do Instituto indicava que uma de suas metas era realizar intercâmbio com instituições universitárias italianas, o que aconteceu de fato, em especial com a Universidade de Pádua.

A partir daí, os estudos e pesquisas sobre a imigração italiana passaram a ter respaldo institucional, que teria reforço num órgão público: o Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami. Antes dessa institucionalização, a recuperação da memória e da cultura da cidade e da região era feita por pesquisadores individuais. Três nomes marcaram essa trajetória. O primeiro foi, sem qualquer discussão, João Spadari Adami, que dá nome ao Arquivo Histórico de Caxias do Sul. O segundo, em ordem cronológica, foi o baiano Thales de Azevedo, cuja presença em nossa história cultural já rememorei aqui. O terceiro, do qual fui devedor em muitas pistas para escrever meus romances, foi Mario Gardelin. Mesmo sem terem feito um trabalho individual, eles construíram um acervo precioso de dados que ficarão na história.

João Spadari Adami, em seu livro História de Caxias do Sul: 1864-1962 (do qual possuo um exemplar por ele autografado em 14 de maio de 1964), tinha ciência da importância de seu trabalho, tanto que dedica sua obra a Nossa Senhora Aparecida, nos seguintes termos:

Foi Ela quem, a meu pedido, com o brilho do Seu ser, tornou visíveis os caminhos, através a escuridão do passado, até a jazida das pérolas da Colônia Caxias, guardadas pelos construtores da Civilização Caxiense, para que eu as trouxesse à luz, ao conhecimento de todos, por meio deste meu trabalho histórico.

Obrigado, muito obrigado Padroeira do Brasil.

Para dar um exemplo do que ele encontrou na “jazida de pérolas”, vai aqui uma síntese da divisão territorial da Colônia Caxias, sobre a qual Adami relaciona seus primeiros habitantes. A fonte dos dados, informa o autor, “é um produto do recenseamento para a emancipação da Colônia e anexá-la ao município de São Sebastião do Caí, realizado entre os anos de 1880 e 1884”.

PRIMEIRA LÉGUA: Travessão Milanês e Travessão São José. SEGUNDA LÉGUA: Travessão Trentino, Travessão São João e Travessão São Vigílio. TERCEIRA LÉGUA: Travessão “Crystal” e Travessão Santa Rita. QUARTA LÉGUA; Travessão Barata Goes, Travessão Tirolês e Travessão Vêneto. QUINTA LÉGUA: Travessão Santa Teresa e Travessão Solferino. SEXTA LÉGUA: Travessão José Bonifácio, Travessão Umberto I, Travessão Herminia, Travessão Carlos Gomes, Travessão 15 de Fevereiro, e Travessão Pihaí.

João Spadari Adami relaciona também a Divisão Territorial da SEDE DANTE, hoje cidade de Caxias do Sul. Estava ela dividida em 77 quadras, cada uma delas com até 10 lotes. E Adami relaciona os primeiros moradores de cada lote “iniciada sua entrada em meados do ano de 1876 até o ano de 1883, época do final deste registro”. Acrescenta ainda as profissões existentes: “Na Quadra nº 2: um carreteiro e um jornaleiro. Na Quadra nº 3: um alfaiate, um carpinteiro, um agricultor e um pedreiro. Na Quadra nº 4: um tanoeiro, um carpinteiro e um negociante. Na Quadra nº 5: dois professores públicos, um escriturário da Comissão de Terras e três negociantes”.

Verdadeiras “pérolas”, sem dúvida nenhuma!

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